Serafim (s.m.) anjo da primeira hierarquia; (fig) criança ou pessoa de rara formosura.O meu avô Serafim não era nenhum anjo. Trabalhava numa fábrica de reaproveitamento de detritos de peixe e vinha almoçar a casa tresandando ao que de mais podre o mar pode ter. Eu achava-lhe graça ao nome. Gostava de o chamar «Ó Serafim!», mas não podia, por causa do respeitinho. Ao respeitinho nunca achei muita graça. Quem achava graça ao respeitinho era o meu avô Serafim.
O meu avô Serafim andava com grandes pacotes embrulhados em papel pardo, atados com cordel fininho e com uma argolinha no fim do nó para se transportar enfiando um ou dois dedos. Quando transportava estes pacotes, pesados, o meu dedo ficava marcado como as goelas de um enforcado. Ficava horas e horas naquele roxo aspeto. Doía. Parecia que o dedo se ia em dois a qualquer momento. Mesmo assim não conseguia evitar fazê-lo. Às vezes ainda olho para laços deste género da mesma forma: com um misto apertado de pavor e vontade. Especialmente por não ser o dedo que me apetece pôr no laço, que foi o que acabou por fazer o meu avô Serafim.
O meu avô Serafim trazia dentro desses pacotes muitas latas com peixe ou outros animais do mar conservados em óleo. Às vezes em azeite, mas eram mais raros na família. Chamávamos-lhe latas de conserva pois não havia mais nada conservado em latas lá por casa do meu avô Serafim.
O meu avô Serafim gostava das de sardinha. Eu preferia as de filetes de cavala. Aqueles embrulhos traziam dentro traineiras de felicidade. Ainda hoje, assim que saco da tampa à lata e vejo o filete a reluzir em óleo, que as de azeite continuam a ser mais raras na família, sobe-me ao nariz uma imensa alegria (como a da mostarda mas sem o pingo) e vem-me à boca o cheiro do meu avô Serafim.
O meu avô Serafim dizia sempre a mesma piada quando comia uma lata de sardinhas em tomatada: «Esta lata só traz sardinhas macho porque têm tomates.» As minhas primeiras espreitadelas aos tomates (literárias e literais) devo-as ao meu avô Serafim.
O meu avô Serafim, pensava eu naqueles tempos, gostava de latas de conservas de peixe porque queria ser um. Queira cheirar a mar vivinho ou, pelo menos, cheirar a peixes em conserva. Se estivesse fechado numa lata, durante a hora do almoço, já não cheiraria ao que de mais podre o mar pode ter, o meu avô Serafim.
O meu avô Serafim olhava-me de soslaio com aqueles seus ares do respeitinho é muito bonito sempre que eu gargalhava ao imaginar-me a abrir uma lata de conservas de serafins e encontrar vários serafins em forma de filete lá dentro. Ainda hoje, quando abro uma lata, sobe-me à boca uma gargalhada porque encontro sempre o meu avô Serafim. Em filete, com asas e auréola de anjo, mas sempre com as grandes orelhas do meu avô Serafim.
O meu avô Serafim gostava muito do respeitinho. Mas com umas orelhas daquelas desconfio que ele não era nenhum Serafim.
Nazaré (2006) |
Pedro deCampos (18.11.2016) in "ApontaMentes"
Que giro. Também tinha um avô Serafim. �� O meu avô Serafim era grande, muito grande e perto dele eu era ainda mais pequena e franzina. O meu avô Serafim ia buscar-me à escola. Eu ficava feliz quando o via entrar pelo portão, a andar devagarinho, porque tinha um joelho coxo. Ele dava-me a mão e eu lá ia aos pulinhos a contar-lhe tudo o que havia para contar. O meu avô ouvia e sorria, porque ele não era de muitas palavras.
ResponderEliminarNa casa dos meus avós as coisas faziam-se à moda antiga: o avô trabalhava e a avó ficava a tratar da casa.
Quando a avó servia o almoço, o avô Serafim resmungava sempre, por causa da falta de sal na comida, como se a avó fosse responsável por ele ser diabético. O que fazia o meu avô feliz era uma bela maçã assada no forno!
O avô tinha uma pequena oficina, muito arrumadinha, onde eu entrava às escondidas, porque o avô não achava piada quando eu mechia nas suas coisas. Ele nunca ralhava, mas fazia cara de poucos amigos. O avô Serafim era assim, era preciso saber ler-lhe as expressões.
O avô chamava-me sempre "minha jóia" ou "carochinha". Eu e o meu avô gostávamos muito um do outro, mas nunca o dissemos, porque ele não era dessas coisas. Ele usava os olhos para falar. O meu avô Serafim era o mesmo que o teu?
O mesmo avô Serafim com netos diferentes: onde uns veem latas de conserva outros recordam maçãs assadas. Obrigado pelo comentário, Raquel. Um grande beijo.
EliminarPedro