quarta-feira, 28 de junho de 2017

A PRESSÃO d'AR (uma história em armazém)

  • LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)



 "Os telejornais das oito (...) diziam que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou discriminadamente vários tiros de pistola pressão d'ar sobre colegas e patrão.» "



"Quem as arma que as desarme." 
( Provérbio Português )

Naquele início do ano de noventa e cinco, eram constantes os riscos que se corriam no gigantesco armazém de venda e distribuição de artigos para pesca e caça, onde o jovem Vital da Silva, com ainda dezassete aninhos, se estreava no mundo do trabalho. O rapaz arrumava, limpava e carregava arduamente todo e qualquer utensílio que se pudesse encaixotar, vender ou comprar, enquanto aspirava vagamente à profissão de fiel de armazém. Parecia ao moço que, com relativa facilidade, poderia ser fiel ao armazém da Pesca&Caça,S.A.. Dos perigos que espreitavam para lá de cada estante, ainda nada suspeitava.

Naqueles dias felizes, a loja tinha sempre clientes e o serviço não conhecia pausas. E isto muito convinha ao Vital pela sua extrema necessidade em se manter ocupado; caso contrário, insuflava-se-lhe a veia criativa. Fácil também é de entender, pela leitura dos protocolos e regras de armazenamento, que tal capacidade inventiva não encaixava com eficácia no espaço físico daquele entreposto comercial.

E, mais palete menos palete, foi exatamente o que acabou por suceder.

Passados alguns meses de árdua colaboração entre patrão, chefes, escriturários, fiéis de armazém, carregadores, camionistas, caixeiros, vendedores, contabilistas e ajudantes, começaram a ser evidentes, nos estreitos e pouco ventilados corredores da Pesca&Caça,S.A., os primeiros sinais de alguma desaceleração económica gerada pelos anos finais (era o que então se julgava) do cavaquismo. A pica dos capitais europeus, muito mais fraca e com cada vez mais intermediários, já não dava o coice de antigamente, e muitos dos velhos pescadores-caçadores-coletores que por ali negociavam antes, bebericavam agora os dias no gim tónico das algarvias reuniões imobiliárias ou delambiam-se no mamilo da liberdade chupando um contrato para mais outro campo de golfe de agrícola interesse nacional.

Conjunturalmente, o frenesi do armazém viu-se reduzido a tiros de pólvora-seca, verdadeira amostra do engodo de outrora. Ao Vital, já a agonia lhe picava o anzol.

Com quase nada para fazer, deu ao gaiatão em colecionar material de pesca. Colecionar é a palavra correta porque o Vital nunca foi rapaz de faina: muito tosco de motricidade, trabalhar com o fio de nylon era mais um emaranhado passatempo que um real empate de anzóis; depois, a minhoca metia-lhe nojo e do casulo chegava mesmo a sentir medo; e ainda havia a, propriamente dita, problemática do peixe – não gostava de lhe sentir o toque, e do qual, desde miúdo, não apreciava cheiros nem sabores. E assim, só pelo puro prazer de inventariar utensílios e só pela pura necessidade de descarregar a adrenalina contida, se deleitou neste verdadeiro desafio: uma febre desmedida de armazenar em casa um exemplar de tudo o que existia em stock e que à exclusiva pratica pesqueira se destinava.

Não obstante os mil perigos que corria, mais não fazia das oito às dezanove (e até mesmo durante a hora de paragem para o almoço), que maquinar ou levar à prática os mais rocambolescos esquemas para tomar de assalto os três andares de armazém que compunham a Pesca&Caça,S.A..

O sorteio diário, à saída, que impunha uma rápida revista corporal em apalpadelas inocentes, obrigou às mais fantásticas estratégias de gatunagem: delapidou alguidares inteiros com anzóis para todo o tipo de pescado, colados com fita adesiva da cor da pele na parte de trás das orelhas; agadanhou quilómetros de fio das mais variadas espessuras, emaranhando-os nos caracóis dos seus revoltos cabelos; rapinou coleções inteiras de amostras coloridas, encaixando-as dentro do cano das galochas em dias de serviço às casas-de-banho; subtraiu um carreto para mar-alto e de alto calibre, despejando-o no lixo em dia de faxina e passando a apanhá-lo de madrugada mesmo antes da noturna recolha dos monos; surripiou os mais diversos tipos de guizos para ponteiras de cana, acolchoando-os nas pregas do escroto e de modo a não tinirem com a passada; e ainda depenou uma dezena de quilos de chumbadas de gramagem variada, enfileirando-as pelo ânus acima.

Corria-lhe bem, a pesca. Navegava calmo nos estrados do armazém.


Enfunara a vela do bom humor e bolinava-lhe já na ideia uma mirabolante técnica para bifar uma cana de quatro metros e meio (o que não se apresentava como tarefa muito difícil pois a ferramenta desdobrava-se facilmente em duas partes de dois e vinte cinco), quando, inesperadamente, se desmotivou. Caído de novo na melancólica desgraceira de ajudante fiel sem tarefa cativante, cabisbaixo se quedou semanas a fio, sem apetite pela vida, entornando-se do trabalho para casa e da casa para o trabalho, já sem o aquático jorro de outrora. E doíam-lhe os dentes, também, até ao nervo alveolar inferior, enjoando noites a fio nas covas das suas oito cáries a postularem por calafetagem estomatológica.

Numa madrugada sem memória, em casa, enquanto preparava algo ruim com gelo para se afundar na cama para sempre, escutou ao longe o arrulhar das velhas rolas que o seu vizinho do rés-do-chão tanto estimava. Logo ali se estacou Vital, de olhos muito arregalados junto ao frigorífico, e eis que milagrosamente lhe ocorre dedicar-se à caça. «Ai as armas, as armas!» Quanto tempo havia perdido na mariquice da caninha, do anzolzinho, da malinha, do banquinho e do lanchinho, ignorando o verdadeiro desígnio da sua curta vida? «Arma ao ombro!», gritou, e ali se decidiu a, a partir de então, matar e esfolar o seu próprio lanche.

Entretanto, no armazém, alertados que estavam os patrões pela equipa da contabilidade sobre os estranhos stocks piscatórios que se evaporavam sem gerar resultados, apertaram as malhas da vigilância e da revista, e ordenaram ao próprio Vital que se mudasse de vigilâncias e bagagens para a secção do armamento. Porque temiam também aí as investidas da gatunagem ou porque dele desconfiavam e queriam-no longe das pescas, não se chegou nunca a saber. Soube-se só que foi erro crasso para todos neste enredo, mas que, naquele precioso momento, deixou o fiel moço à beira de uma euforia espampanante, camuflada no último instante pelo sangue frio que lhe corria nas veias.

À tarefa que lhe deram de fazer exaustivo levantamento das armas e munições presentes, de olear os metais e as madeiras das ditas, e de verificar gatilhos e tambores a todas, engatilhou-se-lhe na ideia testar os materiais e componentes. Ser mais seletivo nas escolhas era agora o objetivo, não tanto pelas novas dificuldades técnicas requeridas ao saque, mas muito mais pelo próprio amadurecimento da personalidade. Estrategicamente se decidiu a começar pelas armas mais simples, evoluindo a seu tempo em direção às mais complexas. A bisnaga, a fisga, o canivete, a navalha, a catana, a zarabatana, o arco, a besta ou a pistola pressão d’ar deliciaram-no, disparando jatos, cunhas, pedras, golpes, dardos, setas, flechas ou chumbos em todas as direções. A pistola pressão d’ar requeria um traquejo que depressa conquistou: recarregar os trinta chumbos no depósito fazia-o em pouco mais de quatro segundos e para injetar no cabo a botija de cê-ó-dois que, do tamanho de um polegar, manteria na arma a pressão alta, demorava apenas três míseros seguros. E tornou-se a sua predileta.

Ei-lo, então, Vital da Silva, menor de idade, doze anos de incompleta escolaridade, aspirante a fiel de armazém, a ira estampada no rosto imberbe camuflado em verdes e negras riscas, invariavelmente refundido e disfarçado, conquistando terreno aos penhascos de caixotes num crescendo de voracidade pelos montes de gavetas acima, explodindo autoconfiança entre os vales de prateleiras e ao pontapé a tudo o que lhe aparecia pela frente. À cintura, uma bem engendrada tira de grosso couro cravada com dezasseis caixas de quinhentos chumbos cada; no peito e às costas, cruzadas à frente e atrás, duas largas cintas cartucheiras onde se perfilavam encaixadas oitenta reluzentes botijas do gás pressionante; à tiracolo, um par de binóculos; uma em cada mão, as duas pistolas em riste.

Se com as primeiras oito silenciosas armas alarido algum havia feito, com a pistola, mesmo sem o fogoso ruído da pólvora, muito começou a dar nas vistas. Para melhorar a já de si aguçada pontaria, atirava rápida e repetidamente em alvos dispostos por todo o armazém e rebentava em performances guerreiras rastejando, trepando e furando tal comando no médio oriente. Os silvados dos chumbos e os baques dos projéteis no metal, no cartão, no plástico e na madeira, atraíram a presença dos mais diversos figurantes da Pesca&Caça,S.A.: primeiro uma dúzia de colegas de hierarquia que, estúpidos com o que presenciavam, apenas se boquiabriram a segura distância; depois vieram as chefias que, por funções a que os postos obrigavam, gritaram que nem uns animais para que parasse com aquela fantochada; quase em simultâneo, o vendedor mais premiado, o patrão e o seu secretário achegaram-se também àquele piso onde raramente empoeiravam os sapatos, para questionarem a algazarra.

«Ó Vital!? Que é te deu, rapaz?» Arriscou perguntar num passo à frente o seu subchefe direto, isto antes de ser atingido por dois chumbos, um de cada pistola, um em cada olho, demonstrando com a cegueira imediata as virtudes atiradeiras do moço. Ficou-se a perceber, de jorro, a enorme gravidade da situação ali armazenada, quando começaram a gritar, uns, a fugir, os outros, e a gritarem e a fugirem ao mesmo tempo, diversos deles. E desapareceram todas as dúvidas no momento em que um dos chefes se decidiu a acudir o seu invisual subordinado quase-morto e foi prontamente furado em cheio na têmpora, ficando a esvair-se num fino repuxozinho de sangue.

E o Vital, que ora gritava que nem um animal a ser sangrado, ora gargalhava louco com os dentes arreganhados, depressa se esgueirou silenciosamente pelos túneis acartonados e pelas pontes de cantoneira que conhecia como as palmas das suas mãos, indo à caça dos restantes colaboradores e empregadores que em mais nada pensavam que se porem a salvo daquela inexplicável selvajaria típica de escola secundária norte-americana.

Na correria, atropelaram-se dois quarentões, um caixeiro de viagens e outro camionista de longo curso, que, caídos de bojo no estrado, foram chumbados de cima para baixo, em plenas cruzes, com quatro projéteis, um para cada rim. Sobrevivendo aos corpos estranhos no organismo, contudo ali se quedaram imóveis, gemendo quase tanto como quando se padece de cólica renal. Quem ouviu os gemidos e não resistiu à voluntariosa prestação de ajudar os próximos, foi um auxiliar de limpezas. Quando colocou a cabeça para lá da segurança do monte de sacos de chumbo onde se havia refugiado, levou com um chumbinho em cheio na artéria femoral, agora de baixo para cima que o Vital já havia mudado inesperadamente de posição. Em minutos se findou, perdendo os vermelhos todos do corpo pelo furinho na virilha e alagando todo o mármore em volta com o precioso sangue.

Com os atropelamentos e os gritos e as correrias e os empurrões daquelas gentes aflitas, e mais as quedas e os estrondos e as explosões dos objetos que derrubavam e pisavam e incendiavam por onde passavam, o número de feridos e mortos ia para além daqueles que o Vital provocava diretamente com as suas supostas fracas armas. Mesmo assim, poderoso nas intenções e cada vez mais enraivecido, começa o caçador a dirigir-se à zona dos escritórios de onde a maior parte dos administrativos já se havia escapulido, não sem antes terem alertado as autoridades e as outras instituições que costumam aparecer nestas imagináveis situações. Lá só restavam o patrão e o seu secretário da administração e de estimação, muito volteando atarantadamente, ambos, com papéis, portáteis, títulos, certificados e outras traquinices típicas destas individualidades. Abre cofre e fecha conta, tira saldo e limpa saco, rasga folha e dita ordens, offshora-se uma lágrima adamantina com elevado índice de refração, e nem deram conta do clandestino aproximar do Vital caçante.

Lá fora, as barulhentas ambulâncias e os amarelos inemes e respetivos bombeiros, enfermeiros médicos e doutores recolhiam e entrapavam aqueles destroços de gente enquanto ensacavam os que já nem gente eram. Os polícias normais mantinham o perímetro imaculado, afastando a empurrão a curiosidade dos abutres populares e tratando de acalmar a preocupação dos familiares das possíveis vítimas. As rádios, as televisões e os jornais, as câmaras, os microfones e os telemóveis, os repórteres, os fotógrafos, os pivôs e os média, escutavam quase uns poucos e falavam mais que todos. Os polícias especiais das brigadas de intervenção estavam de preto, hirtos e calados (os subordinados), e de preto, hirtos e concentrados nas plantas do armazém, os subordinantes – todos se preparavam para a ação.

Vital está completamente alheio ao aparato exterior. Os olhos raiados de sangue almejam à distância as costas das suas próximas vítimas. Lenta e silenciosamente, dissimulado pela cabulagem elétrica do primeiro andar dos escritórios, trepa e arrasta-se pelas cilíndricas condutas de ar condicionado até à divisão pretendida. Pendurado pela tenaz força das pernas ao tubo ventilador, de cabeça para baixo, encontra a linha de tiro perfeita para cilindrar mais dois. Injeta nas pistolas duas novas botijas de ar comprimido – máxima potência de tiro. Verte no carregador chumbos da melhor marca – mais probabilidade de perfuração. Com os seus olhos de lince, tem alinhadas as alças e as massas de mira de ambas as pistolas às carótidas das presas.

Com o frenético ensacar do numerário, patrão e secretário nada pressentem sobre a curta distância a que o fel se encontra deles. Nada desconfiam sobre a eminente perfuração das suas veias e a consequente limpeza eterna das suas almas. Mas saltam quando veem os primeiros agentes das brigadas de intervenção correr ao fundo do corredor. E quando se apercebem do suspenso vulto da besta, camuflada, invertida, rosto contorcido, olhos encarnados, armas eretas – a morte pendente a pouco mais de seis metros de si –, correm histericamente também na mesma direção.

Vital dispara de imediato as pistolas pressão d’ar numa sincronização quase exata. Mesmo com as vítimas em movimento, atinge patrão e empregado nas pretendidas zonas do pescoço. Depois, derruba-os com os binóculos, aplicando-lhes uma repetição de fortes golpes rotativos nos crânios. No chão, inanimados, os homens não sentem o lento vazar do corpo, o sangue a correr vagaroso sobre os papéis, e sem compreenderem que estão a ser assassinados com duas impensáveis chumbadas nas carótidas externas.

Com a bruta entrada dos polícias pela sala, Vital mais não consegue fazer que ganhar algum tempo enfiando verticalmente os canos das armas dentro da própria boca. Sem falar, sem expressar sentimentos, sem transparecer emoções, sem responder aos apelos e ordens policiais, observa a seus pés as vítimas a falecerem e prepara os seus últimos disparos.

«Quando era miúdo, às vezes dava-lhe para chatear a gente. Vinha por trás e amandava tipo pedras da calçada à cabeça da gente.» Confidenciava ao calção curto da jovem e loira jornalista, um vizinho do Vital com mais dez ou quinze anos que o rapaz. E ainda disse: «Mas a gente dávamos-lhe uns murros nas costas e uns pontapés tipo na cara e a coisa ficava por ali. Pior foi quando ele se agarrou ao ácido…» A jornalista, de microfone profissional, pergunta: «O Vital, tão novo, já era toxicodependente?» E o vizinho: «Não, não! Ele era é do tipo independente. O pai dele, que era o melhor pintor lá do bairro, também era muito bom a dar porrada na família. Chegava passado a casa, muita bêbado, e vai tipo de afiambrar na mulher, na miúda e no puto por porras sem jeito nenhum. Uma vez em que o Vital levou dele com uma lata de tinta das de dez litros pelas pernas, todo torcido, ainda agarrou numa de decapante e amandou-lhe com o ácido à tromba. O cota, quando saiu do hospital – e teve lá quase seis meses –, parecia o Nikki Lauda. O pessoal do bairro andou anos a falar na cena.» Cerrou os olhos devagar e encolheu os ombros, expressando corporalmente um simples «É a vida!»

Foram oito os disparos ouvidos pelos polícias que ficaram momentaneamente sem respirar e à espera da queda final do jovem fiel armazenista. Com as armas já caídas a seu lado, uma pistola à direita e outra à esquerda, tomba finalmente o Vital: primeiro, violentamente sobre os joelhos, e depois, muito devagar, o resto do corpo a descair para trás de encontro ao chão alcatifado. Os da ordem afastaram logo as pressão d’ar, viraram o miúdo até à posição lateral de segurança e sentiram-lhe o pulso. Estranhamente o seu coração batia calmo, forte e compassado como o de um velho maratonista. Não havia sinais de ferimentos externos ou internos. Estava apenas apático, de olhar vazio e com um ligeiro esboço de sorriso nos lábios.

Sem qualquer tipo de resistência, Vital da Silva foi despojado da sua camuflagem e munições, algemado nas mãos e nos pés, colocado num reforçado colete-de-forças e transportado em carrinha gradeada e de vidros foscos à prova de bala, em altíssima segurança, para o único estabelecimento prisional psiquiátrico do país. A saída do armazém fez-se de forma muito ordeira uma vez que, comunicando os de dentro com os de fora, conseguiram espantar os populares que pretendiam cheirar o massacre de perto. Algumas máquinas e câmaras indiscretas ainda conseguiram fotos de baixa qualidade e uns poucos curtos filmes daquele jovem rosto criminoso todo esborratado de verde e negro. Continuando sem expressão, apenas apático e de olhar vazio, com um ligeiro esboço de sorriso nos lábios, as fotos nada revelavam sobre o que se passava ou teria passado naquela mente assassina.

Menos de uma hora depois, os telejornais das oito abriam com essas mesmas imagens e diziam que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou discriminadamente vários tiros de pistola pressão d’ar sobre colegas e patrão.» Momentaneamente, o país ficava em choque traumático e com pouco mais reação que um sussurrado «Meu Deus!» entre dentes.

Em simultâneo com o pasmo de um país inteiro que pouco habituado vivia a estas extremas violências internas, o jovem Vital da Silva, acorrentado nas traseiras da carrinha prisional, desenvolve no rosto nova expressão facial, ainda apático e de olhar vazio, mas já com um tremido sorriso a desenhar-se-lhe nos lábios: tocando com a língua nos dentes, sente o formato de oito chumbinhos encrustados nas covas das cáries; contorce-se com uma ligeira dor na ampola retal provocada pelas duas botijas de cê-ó-dois que enfiou no ânus; e recorda-se alegremente da pistola pressão d’ar, tamanho infantil, que traz acolchoada nas pregas do escroto. 
  

Pedro deCampos (27.1.2017) in "LiteraDura do ProleTariado"


Sem comentários:

Enviar um comentário