- LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)
"Os telejornais das oito (...) diziam que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou discriminadamente vários tiros de pistola pressão d'ar sobre colegas e patrão.» "
"Quem as arma que as desarme."
( Provérbio Português )
Naquele início
do ano de noventa e cinco, eram constantes os riscos que se corriam no
gigantesco armazém de venda e distribuição de artigos para pesca e caça, onde o
jovem Vital da Silva, com ainda dezassete aninhos, se estreava no mundo do
trabalho. O rapaz arrumava, limpava e carregava arduamente todo e qualquer
utensílio que se pudesse encaixotar, vender ou comprar, enquanto aspirava
vagamente à profissão de fiel de armazém. Parecia ao moço que, com relativa
facilidade, poderia ser fiel ao armazém da Pesca&Caça,S.A.. Dos perigos que
espreitavam para lá de cada estante, ainda nada suspeitava.
Naqueles
dias felizes, a loja tinha sempre clientes e o serviço não conhecia pausas. E
isto muito convinha ao Vital pela sua extrema necessidade em se manter ocupado;
caso contrário, insuflava-se-lhe a veia criativa. Fácil também é de entender,
pela leitura dos protocolos e regras de armazenamento, que tal capacidade
inventiva não encaixava com eficácia no espaço físico daquele entreposto
comercial.
E, mais
palete menos palete, foi exatamente o que acabou por suceder.
Passados
alguns meses de árdua colaboração entre patrão, chefes, escriturários, fiéis de
armazém, carregadores, camionistas, caixeiros, vendedores, contabilistas e
ajudantes, começaram a ser evidentes, nos estreitos e pouco ventilados
corredores da Pesca&Caça,S.A., os primeiros sinais de alguma desaceleração
económica gerada pelos anos finais (era o que então se julgava) do cavaquismo.
A pica dos capitais europeus, muito mais fraca e com cada vez mais
intermediários, já não dava o coice de antigamente, e muitos dos velhos
pescadores-caçadores-coletores que por ali negociavam antes, bebericavam agora
os dias no gim tónico das algarvias reuniões imobiliárias ou delambiam-se no
mamilo da liberdade chupando um contrato para mais outro campo de golfe de
agrícola interesse nacional.
Conjunturalmente,
o frenesi do armazém viu-se reduzido a tiros de pólvora-seca, verdadeira
amostra do engodo de outrora. Ao Vital, já a agonia lhe picava o anzol.
Com quase
nada para fazer, deu ao gaiatão em colecionar material de pesca. Colecionar é a
palavra correta porque o Vital nunca foi rapaz de faina: muito tosco de
motricidade, trabalhar com o fio de nylon
era mais um emaranhado passatempo que um real empate de anzóis; depois, a
minhoca metia-lhe nojo e do casulo chegava mesmo a sentir medo; e ainda havia
a, propriamente dita, problemática do peixe – não gostava de lhe sentir o toque,
e do qual, desde miúdo, não apreciava cheiros nem sabores. E assim, só pelo
puro prazer de inventariar utensílios e só pela pura necessidade de descarregar
a adrenalina contida, se deleitou neste verdadeiro desafio: uma febre desmedida
de armazenar em casa um exemplar de tudo o que existia em stock e que à exclusiva pratica pesqueira se destinava.
Não obstante
os mil perigos que corria, mais não fazia das oito às dezanove (e até mesmo
durante a hora de paragem para o almoço), que maquinar ou levar à prática os
mais rocambolescos esquemas para tomar de assalto os três andares de armazém
que compunham a Pesca&Caça,S.A..
O sorteio
diário, à saída, que impunha uma rápida revista corporal em apalpadelas
inocentes, obrigou às mais fantásticas estratégias de gatunagem: delapidou alguidares
inteiros com anzóis para todo o tipo de pescado, colados com fita adesiva da
cor da pele na parte de trás das orelhas; agadanhou quilómetros de fio das mais
variadas espessuras, emaranhando-os nos caracóis dos seus revoltos cabelos;
rapinou coleções inteiras de amostras coloridas, encaixando-as dentro do cano
das galochas em dias de serviço às casas-de-banho; subtraiu um carreto para mar-alto
e de alto calibre, despejando-o no lixo em dia de faxina e passando a apanhá-lo
de madrugada mesmo antes da noturna recolha dos monos; surripiou os mais
diversos tipos de guizos para ponteiras de cana, acolchoando-os nas pregas do
escroto e de modo a não tinirem com a passada; e ainda depenou uma dezena de
quilos de chumbadas de gramagem variada, enfileirando-as pelo ânus acima.
Corria-lhe
bem, a pesca. Navegava calmo nos estrados do armazém.
Enfunara a
vela do bom humor e bolinava-lhe já na ideia uma mirabolante técnica para bifar
uma cana de quatro metros e meio (o que não se apresentava como tarefa muito
difícil pois a ferramenta desdobrava-se facilmente em duas partes de dois e
vinte cinco), quando, inesperadamente, se desmotivou. Caído de novo na
melancólica desgraceira de ajudante fiel sem tarefa cativante, cabisbaixo se
quedou semanas a fio, sem apetite pela vida, entornando-se do trabalho para
casa e da casa para o trabalho, já sem o aquático jorro de outrora. E doíam-lhe
os dentes, também, até ao nervo alveolar inferior, enjoando noites a fio nas
covas das suas oito cáries a postularem por calafetagem estomatológica.
Numa
madrugada sem memória, em casa, enquanto preparava algo ruim com gelo para se
afundar na cama para sempre, escutou ao longe o arrulhar das velhas rolas que o
seu vizinho do rés-do-chão tanto estimava. Logo ali se estacou Vital, de olhos muito
arregalados junto ao frigorífico, e eis que milagrosamente lhe ocorre
dedicar-se à caça. «Ai as armas, as armas!» Quanto tempo havia perdido na
mariquice da caninha, do anzolzinho, da malinha, do banquinho e do lanchinho,
ignorando o verdadeiro desígnio da sua curta vida? «Arma ao ombro!», gritou, e
ali se decidiu a, a partir de então, matar e esfolar o seu próprio lanche.
Entretanto,
no armazém, alertados que estavam os patrões pela equipa da contabilidade sobre
os estranhos stocks piscatórios que
se evaporavam sem gerar resultados, apertaram as malhas da vigilância e da
revista, e ordenaram ao próprio Vital que se mudasse de vigilâncias e bagagens
para a secção do armamento. Porque temiam também aí as investidas da gatunagem
ou porque dele desconfiavam e queriam-no longe das pescas, não se chegou nunca
a saber. Soube-se só que foi erro crasso para todos neste enredo, mas que,
naquele precioso momento, deixou o fiel moço à beira de uma euforia
espampanante, camuflada no último instante pelo sangue frio que lhe corria nas
veias.
À tarefa que
lhe deram de fazer exaustivo levantamento das armas e munições presentes, de
olear os metais e as madeiras das ditas, e de verificar gatilhos e tambores a
todas, engatilhou-se-lhe na ideia testar os materiais e componentes. Ser mais
seletivo nas escolhas era agora o objetivo, não tanto pelas novas dificuldades
técnicas requeridas ao saque, mas muito mais pelo próprio amadurecimento da
personalidade. Estrategicamente se decidiu a começar pelas armas mais simples,
evoluindo a seu tempo em direção às mais complexas. A bisnaga, a fisga, o canivete,
a navalha, a catana, a zarabatana, o arco, a besta ou a pistola pressão d’ar
deliciaram-no, disparando jatos, cunhas, pedras, golpes, dardos, setas, flechas
ou chumbos em todas as direções. A pistola pressão d’ar requeria um traquejo
que depressa conquistou: recarregar os trinta chumbos no depósito fazia-o em
pouco mais de quatro segundos e para injetar no cabo a botija de cê-ó-dois que,
do tamanho de um polegar, manteria na arma a pressão alta, demorava apenas três
míseros seguros. E tornou-se a sua predileta.
Ei-lo,
então, Vital da Silva, menor de idade, doze anos de incompleta escolaridade,
aspirante a fiel de armazém, a ira estampada no rosto imberbe camuflado em
verdes e negras riscas, invariavelmente refundido e disfarçado, conquistando
terreno aos penhascos de caixotes num crescendo de voracidade pelos montes de
gavetas acima, explodindo autoconfiança entre os vales de prateleiras e ao
pontapé a tudo o que lhe aparecia pela frente. À cintura, uma bem engendrada
tira de grosso couro cravada com dezasseis caixas de quinhentos chumbos cada; no
peito e às costas, cruzadas à frente e atrás, duas largas cintas cartucheiras onde
se perfilavam encaixadas oitenta reluzentes botijas do gás pressionante; à
tiracolo, um par de binóculos; uma em cada mão, as duas pistolas em riste.
Se com as
primeiras oito silenciosas armas alarido algum havia feito, com a pistola, mesmo
sem o fogoso ruído da pólvora, muito começou a dar nas vistas. Para melhorar a
já de si aguçada pontaria, atirava rápida e repetidamente em alvos dispostos
por todo o armazém e rebentava em performances guerreiras rastejando, trepando
e furando tal comando no médio oriente. Os silvados dos chumbos e os baques dos
projéteis no metal, no cartão, no plástico e na madeira, atraíram a presença
dos mais diversos figurantes da Pesca&Caça,S.A.: primeiro uma dúzia de colegas
de hierarquia que, estúpidos com o que presenciavam, apenas se boquiabriram a
segura distância; depois vieram as chefias que, por funções a que os postos obrigavam,
gritaram que nem uns animais para que parasse com aquela fantochada; quase em
simultâneo, o vendedor mais premiado, o patrão e o seu secretário achegaram-se
também àquele piso onde raramente empoeiravam os sapatos, para questionarem a
algazarra.
«Ó Vital!?
Que é te deu, rapaz?» Arriscou perguntar num passo à frente o seu subchefe
direto, isto antes de ser atingido por dois chumbos, um de cada pistola, um em
cada olho, demonstrando com a cegueira imediata as virtudes atiradeiras do
moço. Ficou-se a perceber, de jorro, a enorme gravidade da situação ali
armazenada, quando começaram a gritar, uns, a fugir, os outros, e a gritarem e
a fugirem ao mesmo tempo, diversos deles. E desapareceram todas as dúvidas no
momento em que um dos chefes se decidiu a acudir o seu invisual subordinado quase-morto
e foi prontamente furado em cheio na têmpora, ficando a esvair-se num fino repuxozinho
de sangue.
E o Vital, que
ora gritava que nem um animal a ser sangrado, ora gargalhava louco com os
dentes arreganhados, depressa se esgueirou silenciosamente pelos túneis
acartonados e pelas pontes de cantoneira que conhecia como as palmas das suas
mãos, indo à caça dos restantes colaboradores e empregadores que em mais nada
pensavam que se porem a salvo daquela inexplicável selvajaria típica de escola
secundária norte-americana.
Na correria,
atropelaram-se dois quarentões, um caixeiro de viagens e outro camionista de
longo curso, que, caídos de bojo no estrado, foram chumbados de cima para baixo,
em plenas cruzes, com quatro projéteis, um para cada rim. Sobrevivendo aos
corpos estranhos no organismo, contudo ali se quedaram imóveis, gemendo quase
tanto como quando se padece de cólica renal. Quem ouviu os gemidos e não
resistiu à voluntariosa prestação de ajudar os próximos, foi um auxiliar de
limpezas. Quando colocou a cabeça para lá da segurança do monte de sacos de
chumbo onde se havia refugiado, levou com um chumbinho em cheio na artéria femoral,
agora de baixo para cima que o Vital já havia mudado inesperadamente de
posição. Em minutos se findou, perdendo os vermelhos todos do corpo pelo
furinho na virilha e alagando todo o mármore em volta com o precioso sangue.
Com os
atropelamentos e os gritos e as correrias e os empurrões daquelas gentes
aflitas, e mais as quedas e os estrondos e as explosões dos objetos que
derrubavam e pisavam e incendiavam por onde passavam, o número de feridos e
mortos ia para além daqueles que o Vital provocava diretamente com as suas
supostas fracas armas. Mesmo assim, poderoso nas intenções e cada vez mais
enraivecido, começa o caçador a dirigir-se à zona dos escritórios de onde a
maior parte dos administrativos já se havia escapulido, não sem antes terem
alertado as autoridades e as outras instituições que costumam aparecer nestas
imagináveis situações. Lá só restavam o patrão e o seu secretário da
administração e de estimação, muito volteando atarantadamente, ambos, com
papéis, portáteis, títulos, certificados e outras traquinices típicas destas individualidades.
Abre cofre e fecha conta, tira saldo e limpa saco, rasga folha e dita ordens, offshora-se uma lágrima adamantina com elevado
índice de refração, e nem deram conta do clandestino aproximar do Vital
caçante.
Lá fora, as
barulhentas ambulâncias e os amarelos inemes
e respetivos bombeiros, enfermeiros médicos e doutores recolhiam e entrapavam
aqueles destroços de gente enquanto ensacavam os que já nem gente eram. Os
polícias normais mantinham o perímetro imaculado, afastando a empurrão a
curiosidade dos abutres populares e tratando de acalmar a preocupação dos
familiares das possíveis vítimas. As rádios, as televisões e os jornais, as
câmaras, os microfones e os telemóveis, os repórteres, os fotógrafos, os pivôs
e os média, escutavam quase uns
poucos e falavam mais que todos. Os polícias especiais das brigadas de
intervenção estavam de preto, hirtos e calados (os subordinados), e de preto,
hirtos e concentrados nas plantas do armazém, os subordinantes – todos se preparavam
para a ação.
Vital está completamente
alheio ao aparato exterior. Os olhos raiados de sangue almejam à distância as
costas das suas próximas vítimas. Lenta e silenciosamente, dissimulado pela
cabulagem elétrica do primeiro andar dos escritórios, trepa e arrasta-se pelas
cilíndricas condutas de ar condicionado até à divisão pretendida. Pendurado
pela tenaz força das pernas ao tubo ventilador, de cabeça para baixo, encontra
a linha de tiro perfeita para cilindrar mais dois. Injeta nas pistolas duas
novas botijas de ar comprimido – máxima potência de tiro. Verte no carregador
chumbos da melhor marca – mais probabilidade de perfuração. Com os seus olhos
de lince, tem alinhadas as alças e as massas de mira de ambas as pistolas às
carótidas das presas.
Com o
frenético ensacar do numerário, patrão e secretário nada pressentem sobre a
curta distância a que o fel se encontra deles. Nada desconfiam sobre a eminente
perfuração das suas veias e a consequente limpeza eterna das suas almas. Mas
saltam quando veem os primeiros agentes das brigadas de intervenção correr ao
fundo do corredor. E quando se apercebem do suspenso vulto da besta, camuflada,
invertida, rosto contorcido, olhos encarnados, armas eretas – a morte pendente
a pouco mais de seis metros de si –, correm histericamente também na mesma
direção.
Vital dispara
de imediato as pistolas pressão d’ar numa sincronização quase exata. Mesmo com
as vítimas em movimento, atinge patrão e empregado nas pretendidas zonas do
pescoço. Depois, derruba-os com os binóculos, aplicando-lhes uma repetição de
fortes golpes rotativos nos crânios. No chão, inanimados, os homens não sentem
o lento vazar do corpo, o sangue a correr vagaroso sobre os papéis, e sem
compreenderem que estão a ser assassinados com duas impensáveis chumbadas nas
carótidas externas.
Com a bruta
entrada dos polícias pela sala, Vital mais não consegue fazer que ganhar algum
tempo enfiando verticalmente os canos das armas dentro da própria boca. Sem
falar, sem expressar sentimentos, sem transparecer emoções, sem responder aos
apelos e ordens policiais, observa a seus pés as vítimas a falecerem e prepara
os seus últimos disparos.
«Quando era
miúdo, às vezes dava-lhe para chatear a gente. Vinha por trás e amandava tipo
pedras da calçada à cabeça da gente.» Confidenciava ao calção curto da jovem e
loira jornalista, um vizinho do Vital com mais dez ou quinze anos que o rapaz.
E ainda disse: «Mas a gente dávamos-lhe uns murros nas costas e uns pontapés tipo
na cara e a coisa ficava por ali. Pior foi quando ele se agarrou ao ácido…» A
jornalista, de microfone profissional, pergunta: «O Vital, tão novo, já era
toxicodependente?» E o vizinho: «Não, não! Ele era é do tipo independente. O
pai dele, que era o melhor pintor lá do bairro, também era muito bom a dar
porrada na família. Chegava passado a casa, muita bêbado, e vai tipo de
afiambrar na mulher, na miúda e no puto por porras sem jeito nenhum. Uma vez em
que o Vital levou dele com uma lata de tinta das de dez litros pelas pernas, todo
torcido, ainda agarrou numa de decapante e amandou-lhe com o ácido à tromba. O
cota, quando saiu do hospital – e teve lá quase seis meses –, parecia o Nikki
Lauda. O pessoal do bairro andou anos a falar na cena.» Cerrou os olhos devagar
e encolheu os ombros, expressando corporalmente um simples «É a vida!»
Foram oito
os disparos ouvidos pelos polícias que ficaram momentaneamente sem respirar e à
espera da queda final do jovem fiel armazenista. Com as armas já caídas a seu
lado, uma pistola à direita e outra à esquerda, tomba finalmente o Vital:
primeiro, violentamente sobre os joelhos, e depois, muito devagar, o resto do
corpo a descair para trás de encontro ao chão alcatifado. Os da ordem afastaram
logo as pressão d’ar, viraram o miúdo até à posição lateral de segurança e
sentiram-lhe o pulso. Estranhamente o seu coração batia calmo, forte e
compassado como o de um velho maratonista. Não havia sinais de ferimentos
externos ou internos. Estava apenas apático, de olhar vazio e com um ligeiro
esboço de sorriso nos lábios.
Sem qualquer
tipo de resistência, Vital da Silva foi despojado da sua camuflagem e munições,
algemado nas mãos e nos pés, colocado num reforçado colete-de-forças e
transportado em carrinha gradeada e de vidros foscos à prova de bala, em
altíssima segurança, para o único estabelecimento prisional psiquiátrico do
país. A saída do armazém fez-se de forma muito ordeira uma vez que, comunicando
os de dentro com os de fora, conseguiram espantar os populares que pretendiam
cheirar o massacre de perto. Algumas máquinas e câmaras indiscretas ainda
conseguiram fotos de baixa qualidade e uns poucos curtos filmes daquele jovem
rosto criminoso todo esborratado de verde e negro. Continuando sem expressão,
apenas apático e de olhar vazio, com um ligeiro esboço de sorriso nos lábios,
as fotos nada revelavam sobre o que se passava ou teria passado naquela mente assassina.
Menos de uma
hora depois, os telejornais das oito abriam com essas mesmas imagens e diziam
que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O
homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou
discriminadamente vários tiros de pistola pressão d’ar sobre colegas e patrão.»
Momentaneamente, o país ficava em choque traumático e com pouco mais reação que
um sussurrado «Meu Deus!» entre dentes.
Em
simultâneo com o pasmo de um país inteiro que pouco habituado vivia a estas extremas
violências internas, o jovem Vital da Silva, acorrentado nas traseiras da
carrinha prisional, desenvolve no rosto nova expressão facial, ainda apático e
de olhar vazio, mas já com um tremido sorriso a desenhar-se-lhe nos lábios: tocando
com a língua nos dentes, sente o formato de oito chumbinhos encrustados nas
covas das cáries; contorce-se com uma ligeira dor na ampola retal provocada
pelas duas botijas de cê-ó-dois que enfiou no ânus; e recorda-se alegremente da
pistola pressão d’ar, tamanho infantil, que traz acolchoada nas pregas do
escroto.
Pedro deCampos (27.1.2017) in "LiteraDura do ProleTariado"
Sem comentários:
Enviar um comentário