domingo, 31 de dezembro de 2017

PIERRE DES CHAMPS (Correspondendo de Montparnasse em Paris de França)

in, Do Escarro, Do Mal & Um Ou Outro Dizer 

(das cantigas do hoje em dia)


"(...) razão para que o primeiro escarro literário deste vosso humilde e servil amante das palavras seja projetado aqui mesmo na Cidade das Luzes, no pleno dos mais apaixonantes bairros da remota Paris e mesmo em cheio no meio dos olhos do fenómeno bestial que é esse cego mundo da moda."

Vivia eu a Paris destes duros dias - embora preguiçasse imenso numa cama barata de uma mais barata ainda pensão no bairro de Montparnasse, prostado frente ao mágico caixote que dá pelo nome de televisor e quedando-me na vã esperança de enriquecer internamente o espírito com um fantástico tele-documentário sobre corpos mumificados espontaneamente pelo decorrer dos tempos - quando um estranhíssimo calafrio me percorreu toda a longitude da espinha dorsal: estaria eu, porventura, a excitar-me - e diga-se-lo sem tabús - mui libidinosamente por aquele raquítico corpo, encarquilhado sobre si mesmo, fidelíssimo retrato da dor de uma morte hipotérmica?

Sim! Era a mais dolorosa das verdades. A dita múmia, anorexizada pelos fenómenos naturais, atraía-me como a mais bela das carnudas morenas portuguesas e tanto como qualquer uma das índias do Gaugin. E é esta a plausibilíssima razão para que o primeiro escarro literário deste vosso humilde e servil amante das palavras seja projectado aqui mesmo na Cidade das Luzes, no pleno dos mais apaixonantes bairros da remota Paris e mesmo em cheio no meio dos olhos do fenómeno bestial que é esse cego mundo da moda.

Passo de seguida, apressado, a explicar os porquês: porque esta faceta do mal a que não resisto nem consigo combater, dita-me as cores que devo usar nas estações que mais me apaixonam; porque atrofia a livre estética do corte pessoal; porque desenvolve vilmente aquelas frases feitas, palavras malditas, dizeres do corte golpeado bem fundo em algumas pessoas, noutros pessoais e naqueloutros pessoanos também; porque se ouvem, infinitas vezes mil, aqueles "Veste-se tão mal, coitadinho...", muito pouco sábios dizeres; e ainda, essencialmente, porque todas as ainda púberes donzelas, adolescentes mal consciencializadas, jovens já safadas e também as damas muito sabidas, são assim impelidas à vontade de quererem pesar trinta quilos e tornarem-se empresárias de um par de pernas um tanto ou quanto parecido ao da múmia por quem me apaixonei há pouco. 

É que, quer queiramos quer não, a publicidade óssea chega a todos e a todas as partes.

Pedro deCampos (16.09.2000) ∈ PÉGASO - Jornal de Parede


DO ESCARRO, DO MAL & UM OU OUTRO DIZER (das cantigas de hoje em dia)

Serve a presente coluna (1) ao ocidental que a escreve, para exorcizar todo o seu sentir odioso e assim, deste grosso modo e através da cerimónia que se processa apenas e só pelo acto partilhador que é a escrita e a leitura, descarregar as acumuladas raivas nadas dessas questões que o atormentam e que simplesmente consistem em conhecer se "ainda sentem os ocidentais?" e se porventura "não estará muito doente, este ocidente?". 

Desta forma, todos os meses será atribuído a pessoa incerta, coisa anormal, sacanagem esperta ou fenómeno bestial, um bastante simbólico mas muito asqueroso e valente escarro; com as referências aos muitos males que o obrigam ao pigarrear goelífero e espectorante, e com as alusões aos curriqueiros dizeres tornados frases feitas e quase eternizados sobre a forma de ditados populares (embora desprovidos de qualquer sabedoria), espera o criador suportar a fundamentalidade teórica da sua dita cuspidela nojenta. 


Depois de, sem segundas intenções, ser oferecido o jocoso prémio, esperam-se apenas os merecidos agradecimentos da parte do humedecido laureado: é que um escarro nos olhos pode muito bem vir a fazer ver!

(1) A coluna mensal "Do Escarro, Do Mal & Um Ou Outro Dizer (das cantigas do hoje em dia)" subsistiu entre os meses de setembro de 2000 e junho de 2002 numa esconsa parede do Instituto Jean Piaget, em Almada. Das catorze crónicas escritas, apenas uma foi publicada em papel (no Jornal A Voz do Olhar). Contudo, estiveram todas pregadas no PÉGASO, um fantástico jornal de parede do qual nunca se fez sondagem, estudo ou inquérito algum para saber se era muito, pouco ou nada lido. Que se fodessem os números!  









Pedro deCampos ( 16.09.2000 ) in, "PÉGASO - Jornal de Parede"

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

AUTOCLISMO vs. AUTOCLISMOS ( Je Suis WC, Almada )

O primeiro autoclismo de que me recordo era da marca Dilúvio. De um reservatório junto ao teto pendia uma corrente metálica e um puxador. O meu pai tinha-o pintado de prateado. Era uma lindeza! Depois, discretamente, sucedeu-lhe o Hipólito. Com reservatório encastrado, dava ares de inocente botãozinho de mola no topo de um só tubo em aço inoxidável. De três em três anos, aproximadamente, exteriorizava-se em nascentes ferrosas por dentre as juntas dos azulejos. Um pantanal! Já em pleno segundo milénio desagua-nos lá em casa o Sanitana. De virginais e radiantes cerâmicas mas com um nome que não entusiasma ninguém, parece mochila de loiça sem alças, carregada quase sempre em grande esforço. Que disparate!


segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A BERNARDETE (uma história em auditório)

  • LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)



 "O burburinho inicial que se fez logo morrinha de aplausos, cedendo lugar a uma bátega de vivas e caindo num trovejo de urros e gritos, não davam espaço às dúvidas iniciais de Noémia de Valente Albernoz ou dos presentes mais relutantes, que, encharcados de emoção aprovavam, assim num relâmpago, a mais jovem das palavras portuguesas."



"A causa ruim, palavras sem fim." 
( Provérbio Português )


XXXVIII Congresso Nacional de Linguística
(aos vinte sete dias do mês de julho do ano de mil e dezasseis)

Aquele fenómeno não tinha precedentes. Passar sem documentá-lo ou não divulgá-lo era quase um crime contra a humidade, um hominídeo em primeiro grau. Não demorei um fósforo a decidir-me: além de já ter despachado o paper pelos habituais meios de comunicação, iria incluí-lo nas minhas mais concorridas conferências do périplo europeu. Naquela véspera, no quarto do hotel, sabendo de antemão do incêndio linguístico que estava prestes a cuspir, acordei ensopada em suores etimológicos e urinei um léxico muito concentrado, fétido e de tons realmente assustadores – algo pouco habitual na minha longa e experiente vida académica e de dedicação à linguística.

Às dez da manhã, já sou eu, Noémia de Valente Albernoz, saia-casaco, pasta-sapato e broche-echarpe requeridos pela etiqueta, perante quase dois mil no centro de conferências. Depois dos aplausos e pigarreios, dos centros de mesa e dos copos de água, dos diz que disse e dos escreve que escreveu, discorri:

«Os nomes taparuére, lambreta ou botox são tão comuns quanto bem conhecidos de todos os portugueses. Mas nem sempre assim foi. Tempos houve em que esses nomes mais não eram que irreconhecíveis substantivos próprios, simplórias nomenclaturas comerciais para os produtos que então se apresentavam às gentes. Nessa época, trancada que ficou no século passado, palavras como chiclete, cotonete ou gilete eram tão conhecidas e prontamente descodificadas como hoje em dia também não o são alguns interessantes vocábulos novos, como o ondulante tolitinolobruprofeno, nomeando analgésicos em cápsulas naturais revestidas a tripa para absorção lenta ao nível do intestino, ou o atualíssimo i-not, que nos oferece finíssimos caixões em cerejeira. 


No entanto, percebemo-lo hoje claramente, não são raros os casos em que passar de nome próprio a nome comum é, na verdade, uma espécie de progressão na carreira comercial dos substantivos de consumo, mesmo que tal implique a queda ou a perda de alguns fonemas no longo caminho percorrido até ao apalavrado estrelato da rentabilidade. 

Se nos casos da americana farinácea maizena ou do caldoso knorr alemão tudo mudou no produto desde o seu nascimento mas ficando os nomes para sempre iguais, o mesmo não sucedeu com alguns dos produtos já acima referidos, especialmente no que concerne àqueles cuja terminação contém a perfumada fonia éte – soando algo afrancesados mas, na realidade, carregados de anglicismos norte americanos.»

Ouvem-se muitos ós de espanto no anfiteatro. Noémia continua, imperturbável:

«Por cá perdendo o ésse mas ganhando um é final, tal qual garoupa que muda de sexo conforme convier à espécie, a controversa chiclete é mastigada por ambos os sexos sem descriminações: mesmo que seja feminina em Portugal – a chiclete –, enquanto se masca masculina no Brasil – o chiclete. Na nuvem lusofónica também lhe chamam chuinga, gâme ou pastilha elástica, mas, por lhes faltar a sensualidade vocálica que abunda em chiclete, nunca tiveram direito a uma canção pop no top, tal como sucedeu a esta.»

Olham-se desentendidos os mais novos. Riem-se os quarentões e os ainda mais velhos. Bebe dois golos de água e prossegue firme como um mineral:

«Cotonete também gera confusões. Igualmente americano de nascença, aparece por cá, contudo, assim mesmo redigido, com a sua forma escrita não perdendo nem ganhando na grafia ou na fonia; mas, se comparado com a mais modelada cotonnette francesa, vai que entre Paris e Lisboa perde nos énes e desvaloriza nos tês. Ainda incrementa a confusão porque, servindo tanto ao macho como à fêmea, também pode o nome variar do masculino para o feminino – e mesmo assim o pavilhão auditivo continuar asseado. Não é invulgar ter-se na casa de banho um gaiato a escarafunchar com um cotonete e em simultâneo, no quarto de banho, uma moça a fazer rodopiar uma cotonete; mas tal preciosidade linguística já vai rareando neste reino tão enfermo de palavras duma mesma família.

Curiosamente a gilete tem também história complexa. Chega da América deixando naufragados no Atlântico um éle e um tê, e embora se inicie com uma singela lâmina, hoje em dia escanhoa com um recorde de sete chapas de aço – oito, se se tiver em conta a afiada folha especial para delapidar patilhas. Aparece, nos primórdios, para tornar o rosto dos mais rijos homens em imberbes rabinhos, mas logo passa a rapar também as pernas, as coxas, as virilhas (e suas continuações) e as axilas das senhoras, e também os seus bustos e faces nos casos mais dramáticos. Mais tarde, jogam-se às pernas de ciclistas e de nadadores profissionais, de ambos os sexos, para que estes atletas possam deslizar várias milésimas de segundo abaixo do esperado nos respetivos ambientes competitivos. Já neste século raspam-se para as peitaças, os coros cabeludos, as costas, os sovacos, as virilhas outra vez, os escrotos púdicos, os esgotos púbicos e os esforços públicos de todo e mais um qualquer espaço peludo de gajo ou gaja sem exceção. Tal como vem sucedendo no duelo entre a lâmina manual e os modelos elétricos mais recentemente nascidos, o nome também tem resistido às muitas mudanças nos hábitos pilosos do humano ocidental, mantendo-se teimosamente como substantivo feminino em qualquer lugar do mundo ou em qualquer canto do corpo.»



Assenta-se na plateia com a cabeça em movimentos verticais. Há mãos que confirmam as afirmações passeando dissimuladamente em algumas partes do corpo: uns por vales bravios; outros por planaltos desbravados. Com um leve tremor de lábios, adivinha-se o final: 

«Felizmente, com mais ou menos vogais e consoantes, estes substantivos generalizaram-se como nomes comummente aceites, não sendo assim necessário, por agora, pedir ao balcão do café uma goma de chicle aromatizada com frutos silvestres, dizer-se que já nos estão a acabar os aparelhos de barbear compostos por duas peças onde se encaixa pelo menos uma lâmina, ou pedir à mãe que nos passe nas orelhas duas ou três hastes flexíveis com ambas as pontas revestidas por algodão para fins higiénicos ou não.

E, não obstante a imensidão existente destas palavras, até eu, Noémia comum que sou nas horas vagas, calço crocs, corro de licra, conduzo um jipe, cozinho em pirex, lamino a inox e talvez não venha a resistir aos encantos do botox. Até eu, dizia, sinto um especial e acrescido carinho por estes nomes que me vêm acompanhando há mais ou menos idades, especialmente pelos afrancesados terminados em éte, graças à minha formação inicial nas literaturas francesas mas mais ainda pelo meu linguajar de alcova.»

Com um arquejar trémulo, suspende os presentes por um fio, indiciando na voz pausada uma trovoada neológica:

«E é assim, com deleitado e linguarudo prazer, que muito gozo em apresentar-vos o galicismo que já anda nas bocas do mundo, que já sussurra aos ouvidos da Terra, tornando oficial a passagem de substantivo próprio a nome comum (para efeitos comerciais), do neologismo bernardete.»

O burburinho inicial que se fez logo morrinha de aplausos, cedendo lugar a uma bátega de vivas e caindo num trovejo de urros e gritos, não davam espaço às dúvidas iniciais de Noémia de Valente Albernoz ou dos presentes mais relutantes, que, encharcados de emoção aprovavam, assim num relâmpago, a mais nova das palavras portuguesas.

À saída do auditório, com um sorriso rasgado pelo triunfo, Noémia declara às televisões que não mais a largaram desde a sua apresentação:

«Não há agora cidadão que não sonhe, deseje, suspire, grite durante o sono ou até que mate por uma bernardete. Os muitos portugueses que não podem comprá-las, lá se quedam imaginando-se servidos à mesa por uma bernardete, vestidos de manhã por outra bernardete, de cabelos escovados ao deitar pela terceira bernardete, leve-me as crianças ao colégio, Bernardete, reveja-me este discurso, bernardete, não se esqueça dos depósitos nas Caimão, bernardete, e as ações?, venda, bernardete, venda, venda-se barata, Bernardete, venda-se pelo salário mínimo, bernardete, foda-me com força, Bernardete, foda-me todo, foda-me a tempo inteiro no seu quartinho dos fundos deste palacete magistralmente imaginado e, vá lá, pode ir que eu deixo, regozije-se com o namoradinho no seu único meio-dia de gozo mensal.»


«Já encomendou a sua bernardete?» Pergunta um arrojado microfone em riste que, à falta de resposta, vira-se para a câmara e termina o direto:

«E assim dramatizam os portugueses as melhores cenas das suas vidas, idealizando um infinito crescimento económico enquanto brincam aos ricos nas suas casas hipotecadas até aos algerozes, com a bernardete que nunca hão de alcançar.»
   
Pedro deCampos (11.6.2017) in "LiteraDura do ProleTariado"



segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A METAMORFOSE CÉREBRO-GRIPAL ( IX, X )



Diário do Doutor Araújo Mil Acres, médico cirurgião da palavra mais estranha.





9. REIVINDICAÇÕES DO POVO GREGORIANO
(implicações no mundo moderno)

Diz o classificado e anedótico dossier
pela estadunidense putaria denominado
“Nova e Viva Mitologia Portuguesa”
ou “Como Salvar A Mitologia em Portugal”
e ainda “Um Vomitado À Beira Mar Plantado”,
que o mundo gregório se sindicalizou
numa dita dura do vomitado
gregórios de todo o mundo, uni-vos
num grande esforço à pestilência dedicado
escorrendo pastas arroxeadas pelos bairros mais finos
num excremento pela nata exalado

uma pasta pelo neo-liberalismo criada
uma papa pela madre igreja abençoada
uma mistela pela ignorância nada
um caldo pelo silêncio apodrecido
um liquor pelo maus tempos enriquecido
um sapo pelo povo deglutido
crosta pelas artes cagada
amalgama azeda por políticos escarrada
sentença amarga pela justiça afagada

massas orgânicas do vinho putas
sangrando pedaços de órgãos clonados
cores dançantes mirabolantes atraentes
mágicas doces borbulhantes ferventes

vivendo-se
escorrendo-se
arrastando-se
exalando-se

avenidas quaisquer
cidades também
países imundos
continentes profundos
neste, naqueles, aqueloutros e todos mundos
castrando

até serem comidos por 1 bobi
figura principal
actor irreal
protagonista fenomenal
da fita animal
os 101 bobis
do realizador Alfacinho-carioca
sobrinho-neto de José Sarney
(também dentista afamado
travestido e disfarçado
e em futebol de praia cursado)
Valter Dizenei






10. DOUTOR ARAÚJO MIL ACRES
(uma saga gregoriano-familiar - o conflito geracional)




















…enquanto isso:

julguei-me eternamente bafejado pelo infortúnio
no árduo papel de encarregado de educação,
porque ao entrar o quentinho do lar
e no meu aconchegado ninho me preparar
para amadurecidamente repousar,
ainda não havia deposto a gabardina,
nem afagado a doméstica siamesa felina,
e logo me deparei com a missiva chocante
do ingrato adolescente inconstante.

“Filho do demo”, apetece dizer
depois do mísero recado ler
“endiabrado vomitado, sejas tu
por um autocarro atropelado
num carril de eléctrico electrocutado
e muito muito pelo povo espezinhado
arrastado e humilhado em pleno Chiado”.

Apetece mil vezes mil repetir
e sem apelo nem agravo retorquir
com duzentos açoites e outras tantas bofetadas
os sacrifícios, os desgostos, as noites inflamadas.

Escrevinhei de pena em riste
(notando-se a lágrima no papel
com algum sal na percentagem de fel)
germinei um capítulo triste
de modo verdadeiro e fiel
mas resguardando o conteúdo da carta
da pobre Mãe, mulher tão farta
e propensa ao crítico enfarte
uma espécie de forma de arte.

E assim ficou:

“Pai:
A mãe já não está
bem nem mal; passada.
É como ela está!
Saiba-se porquê?
perguntará vocemecê
que se seu diário tão amado
a ela não furtasse o mais desejado…”

“Novos caminhos pretendo desbravar,
construir oceanos só meus
marés das entranhas saídas, decerto
mares que ninguém conhece, é certo,
dar-me ao céu e às descobertas
no alto mar da agonia
e nas lustrosas madeiras da coberta
saborear uma placenta, chorar uma cria.”

“Sentir nove horas neste estômago
um vómito enjoado
e comungar enojado
satisfazendo-me realmente
ao cuspi-lo eficiente.”

“Lembre-se da minha plumagem, meu pai!
Recorde o luzidio roxo e o verde tão lindo!
Comemore os nossos anos de oiro
em que o bobi dava o coiro
para me chupar com uma palhinha
para me engolir via oral
muscular ou intravenal.”

“Deixe-me ir com a paz, velho amigo!
Pense que o meu baptismo já não é de agora
reparando naqueles que hoje sigo
e pelo nome tão mal cotados lá por fora.
Quero ir para outros invólucros…
ser engolido e deglutido novamente
que me cansa esta simplicidade redutora
elevada a modo-vida da gente.”

“Vou para a América latina
para lamber uma latrina.”

“Não me insulte
nem me maltrate.
O senhor que se diz escritor
de toda a sabedoria detentor
que nem um diário consegue acabar
não vê que se está a metamorfosear?
Venha comigo
seja o elo que as espécies une
vamos cantar ao mundo
num dueto intune
as possibilidades da técnica
as boas novas da evolução genética”

“A Deuses”

Confesso:
Fundeando bem a alma
dragando bem todo meu íntimo
também eu derramei meu sal
lacrimal, seja dito,
sobre o crocodilo do Nilo;
se um funil tivesse à mão
recolheria o meu vasto lamento
escreveria uma bonita canção.

A canção do lamentável pai:

“Não partas filho
não partas por esse caminho
não partas criança
não partas o coração ao pai
não partas rebentinho
os cornos à tua mãe
de dor e preocupação
de medo e consternação
não te juntes à dita dura
não abandones a cura”

Nunca adentrei pelas tabelas nacionais
com a lamentosa e melodramática canção;
nunca fui itpareide do meidim Portugal
nem se seleccionou para qualquer festival.

Araújo Mil Acres (12.1999)


domingo, 30 de julho de 2017

O HOMEM DOS LIVROS IA FICANDO SEM PEQUENO-ALMOÇO, por Vasco deOliveiraVentura


Cronista Sem Abrigo

"Onde se abrigam as crónicas sem abrigo." 

A noite encontra-me do outro lado do rio, num espectáculo de Manuel João Vieira. O artista canta o testículo; as prostitutas; uma adaptação de uma melodia agora dedicada a Ricardo Quaresma, explicando que não se trata de racismo nem de xenofobia, mas exactamente do contrário… Acerca da canção sobre a pedofilia com a avó, é menos detalhado nas explicações prévias.

Comigo está o homem dos livros, o meu grande amigo que descobre as obras mais preciosas, raras e perdidas, e faz com que cheguem a minha casa.


















Desta vez, conseguiu encontrar um volume com a parte que me faltava d’A Ressureição”, do aclamado Leo Tolstoi, que já se encontra nas minhas mãos.

A expectativa é grande. No dia seguinte vai à Feira da Ladra, em busca de mais relíquias sem preço, pelo que a minha casa lhe parece um bom ponto de paragem. Como irá reagir a minha Amélinha, aliás, “Gáata!”, que nunca viu este meu querido amigo?!

Algumas cervejas depois, entramos em casa, já de madrugada. Pela primeira vez desde que faz parte do meu mundo, a Gáta não foge nem se esconde perante alguém com quem nunca se cruzou. Anda por ali, à nossa volta, sem medo do meu intelectual companheiro.

Fumamos e deitamo-nos. Na manhã seguinte, ouço um leve ruído, mas não o vejo. Após sucessivas buscas, encontro o meu livresco camarada fechado na sala, a tomar o pequeno-almoço. O Jeremias, o meu ronronante gato-cão, não dava descanso à caixa dos cereais e ao pacote de leite, de maneira que ele teve que se refugiar e enclausurar ali, para poder engolir a primeira refeição do dia.

Passado pouco tempo, o homem dos livros, que hoje não tem que dar assistência aos seus alunos, já que é sábado, vai à sua vida, em busca de preciosidades de papel amarelo e roído pelas décadas. Antes de sair, a habitualmente esquiva e fugidia Gáta ainda o deixa fazer-lhe umas festas…

sexta-feira, 28 de julho de 2017

AS REDACÇÕES DA GUIDINHA: O CAVALO, por Luís de Sttau Monteiro


Pelo Humor de Deus!


"o cavalo também é bom para bifes mas a minha mãe diz sempre que são de vaca porque senão a Vovó não come lá porquê não sei porque come fressura e isso é que eu comia nem que lhe chamassem lombo de vitela"


O cavalo é um bicho que tem quatro patas e carroça mas há cavalos que não têm carroça porque fazem corridas mas quem leva a taça são uns homens pequeninos que andam em cima deles e há os cavalos das touradas e o senhor Francisco que o meu Pai diz que é o maior cavalo que ele alguma vez viu e os cavalos dos cow-boys que conhecem os assobios dos donos e salvam-nos quando os índios os estão a matar e o D. Afonso Henriques tinha um cavalo porque os reis andavam a cavalo só os presidentes é que não sabem montar e nas batalhas o rei D. Afonso Henriques ia todo vestido de rei que é um fato de lata e entrava à espadeirada aos inimigos que fugiam dele não sei porquê e o cavalo também é bom para bifes mas a minha Mãe diz sempre que são de vaca porque senão a Vovó não come lá porquê não sei porque come fressura e isso é que eu não comia nem que lhe chamassem lombo de vitela o cavalo tem pêlo curto e faz uns pupus que parecem pastéis de bacalhau mas não são e por isso é que é preciso ter cuidado porque se uma pessoa se engana pode ficar atrapalhada uma coisa que eu sei é que há uns cavalos que têm o rabo penteado aos quadradinhos esses são da Guarda Republicana que é uma guarda que quando os cavalos morrem corta-lhes os rabos para usar nos chapéus também sei que os cavalos não põem ovos o que é uma pena porque se pusessem um ovo estrelado ele dava para uma família inteira mas há nos cafés uma coisa que se chama bife com um ovo a cavalo e está-se mesmo a ver que o bife é de cavalo eu sei porque o meu pai levou-me a comer um num café e tinha muito molho e muitas batatas o que tinha era pouco bife os cavalos são mamíferos porque mamam mas não sei aonde já as espreitei e não as vi se calhar ficam debaixo do selim outras coisas que os cavalos têm é umas palas do lado dos olhos para não verem para o lado se as pessoas também tivessem não viam as montras e as coisas não se vendiam cada vez há menos cavalos e é pena porque eu gosto de os ver fazer pupus como pastéis de bacalhau coisas que os eléctricos não fazem eu não sei porque é que me mandaram fazer esta redacção de cavalos são lá coisas do director da escola que se chama Pires e tem manias mas já está feita só falta um parágrafo para encher o espaço todo


cá está ele

e mais um

e outro

e mais outro

e acabou-se


in, Redacções da Guidinha (1969-70) Ática, 1.ª ed., 1971, Amadora, pp. 35-8 


quarta-feira, 26 de julho de 2017

A METAMORFOSE CÉREBRO-GRIPAL ( VI, VII, VIII )



Diário do Doutor Araújo Mil Acres, médico cirurgião da palavra mais estranha.





6. OS SACRIFÍCIOS DE UM MÉDICO
(diário camoniano mas à prova de água)










…ao diário então voltei,

doente, débil
molestado pela agonia
enfraquecido, pelas febres comido
de dia para dia
em noites de demência, medo e diabrura,
que aquele diário me pareceu só fel e amargura
como um diário de bordo
do bom, do mau ou de quais
isso não o sei,
de tão enjoado estava e enojado
que o estilo desenhado
da minha própria caligrafia
me lembravam ondas e balanços,
terríveis fedores de lodaçais podres
em horas de maresia
que para ser auxiliado
nesta demanda de cruzado
o gregório chamei

e nos joelhos e na púbis e no abdómen e nos cotovelos
com a tromba com a testa com a próstata e tornozelos,
às vezes e vezes e sem conta mais ainda vezes encostei
na coberta apostei, implorei, vomitei, agonizei, enfim, regurgitei
cantando,


cantando muito, assim:

               Gregóooooorio… do Grego
               Gregóoooorio… no rio
               Gregóooorio… tão frio
               Gregóoorio… notório
               Gregóorio… caí
               Gregório… de grogue
               Regório… a fio
               Egório… of poached eggs
               Gório… velório?
               Ório… fodi
               Óri… p’ra ti
               Ór… as e horas
               Ó… Gregóooooorio !!


mas ao vómito gripal sobrevivi.




7. RECEITA PARA DAR VIDA A UM GREGÓRIO
(o novo ser mitológico)



fosse indigesto, torpe, mesquinho e cruel, 
o famoso Pantagruel,
me recomendasse uma “Massada Vil
au Camarão do Tejo Caril”,
ou um bechamel em infectada
“Tainha Sodré Recheada”,
e, de modo algum um dia,
em tão maus lençóis cairia
como enquanto naquela coberta batia,
às portas da mitologia…

…Portuguesmente se sinta
e Almadanadamente se pense
que o Gregório se tornou gente.





8. ALGUNS ANOS LUZ MAIS TARDE
(na continuação do episódio anterior)

E foi aqui em Portugal
em tempos de epidemia
metamorfósica cérebro-gripal
que, topessecretamente documentado pela generosa CIA,

aquele a quem chamavam “vomitado”
e que simplesmente consistia
no acto de de dentro de nós ser lançado
e pelos ébrios jovens da época se via
agora terrivelmente alcunhado
nas bordas de qualquer pia
por Gregório, o Mal-amado,
que esta figura da mitologia
se viu finalmente nado.


Consiste simplesmente
num ser que, felizmente,
não fala e nem sequer mente
apenas se desenvolve em ácidas entranhas
enquanto gera indisposições estranhas
como se pelo esófago hospedeiro trepassem aranhas
obriga a vítima a contínuos movimentos peristálticos
incessantes desenvolvimentos nevrálgicos
contínuas convulsões lamentos terríficos
mas, contudo, por assim dizer,
após do suado corpo da vítima se ter auto-expelido
fêmeas houve que o oscularam gritando “marido”
e machos fortes lhe chamaram: “filho querido”,
que este gástrico ser imediatamente se convenceu
face aos narcísicos mimos de todo aquele que à luz o deu
que o velho Gonduana e Mundi podia ser todo seu.


Araújo Mil Acres (12.1999)


segunda-feira, 24 de julho de 2017

PÚDICO vs. PÚBICO vs. PÚBLICO ( Je Suis WC, Porto)

O pelo classifica-se em três categorias distintas: 
pelo púdico, pelo púbico e pelo público.

O púdico perdi-o lá pelos dezoito; 
o pelo púbico perco-o desde os doze; 
pelo público só durante os dois anos que fiz naturismo.
Perdido o pelo, perdido o costume. E a ética e a moral. 
Sem o pelo já ninguém distingue o púbico do público do púdico. 

O fim de uma inteira civilização às mãos das cabeleireiroesteticistas 
e suas faixas de cera fundida a quente.




"E tudo a água levou."
Café "SATÉLITE", Porto




Pedro deCampos (8.2.2017) in "ApontaMentes"




W.C. FIELDS vs. WC CAMPOS ( Je Suis WC, Hollywood )

Há o W.C. Fields, o escritor americano, e o WC Campos, que sou eu na retrete. 
Nunca li nada do W.C. Fields mas ele também nunca esteve na minha casa de banho.







Bertold Brecht:

"Lugar de sabedoria onde podes com lazer preparar a tua pança para muito outro prazer."






Pedro deCampos (8.2.2017) in "ApontaMentes"


terça-feira, 18 de julho de 2017

A METAMORFOSE CÉREBRO-GRIPAL ( IV, V )



Diário do Doutor Araújo Mil Acres, médico cirurgião da palavra mais estranha.





4. DIÁRIO DOS SACRIFÍCIOS DE UM MÉDICO
(prováveis implicações no reino animal)


foto NUNO REALINHO (Projectos SuReal) 





















…edifiquei eu então,

em plena indisposição e mal-estar
porque da doença infeliz
para melhor estudo eu me fiz,
alvo, cobaia, hospedeiro ou lar,
um Majestoso Diário
utilíssimo à humanidade:
do bisonte ao rinoceronte
do símio ao hominídeo,
do jacaré ao chimpanzé,
grandes e estranhas alterações
com genéticas repercussões
nas respectivas evoluções
porque todos aplaudiram de pé

e nunca mais se esquecendo
de como a mão solta dá um certo jeito
e o polegar oponente
permite ser tão diferente
e um dedo indicador
tão nervoso e com fervor
pode com facilidade disparar
tiros de carabina para o ar,
foi assim que a fauna animal
passou a viver menos mal

porque seu predador principal
de caçador a presa passou
e em perigo de extinção entrou.

Animais e plantas unidas
jamais serão vencidas
na luta que vão travar;
querem regras decididas
leis que preservem vidas
para o ser humano salvar.




5. REGULAMENTAÇÃO SELVAGEM
(alguns artigos para salvar a humanidade)
























Artigo 1º : Crânio-Missanga

Fica proibido o elefante,
(o mais trombudo dos paquidermes
o menos leve dos terrestres animais),
de os humanos tratar como vermes
ao, egoisticamente, se embelezar
com seus crânios mirradinhos
tal e qual missanga azul-mar
em pulseira, aliança ou colar.

Artigo 2º : Palito-Mindinho

O segundo dos artigos
ao gorila é dedicado
para abolição natural
de a velho costume habituado;
desenraizar da cultura símia
o paliteamento do dente
sempre que executado
com mindinhos de gente.

Artigo 3º : Pilinha Afrodisíaca

A qualquer rinoceronte branco
ou aos cinzentos também dirigido,
sobre os míticos afrodisíacos
recaíu a temática deste artigo.
Que viril seja por si mesmo e só,
se reclama ao pré-histórico animal;
desacredite, doravante, a pilinha tenrinha
como alimento da tesão fenomenal.

Artigo 4º : Tenros Petiscos


Proíbem-se todos os animais
e também os carnívoros vegetais
de para sempre se delamberem
com certos petiscos como tais:
todos aqueles cujo ingrediente
seja considerado incorrecto
por consistir ou apenas derivar
do humano e tenrinho feto.

Artigo 5º : E Da Ova Se Fez Peixe

Se da ova de todo o peixe
o homem apreciador se fez,
será muito grande esta lição
(um dar da face à malvadez)
se se convencer o terror dos mares
que dá pelo nome de tubarão
de chiar orgulhosíssimo:
“Mais mulheres grávidas não!”

remotas histórias de eras esquecidas
que por vezes convém relembrar.



Araújo Mil Acres (12.1999)


segunda-feira, 17 de julho de 2017

VAMOS TRANSFORMAR AQUELAS MONTANHAS EM ESCOLAS, por Vasco deOliveiraVentura


Cronista Sem Abrigo

"Onde se abrigam as crónicas sem abrigo." 

Tinha havido um horrível atentado no Paquistão, levando à morte de dezenas de pessoas. A meio da conversa, o tema foi introduzido e o rapaz de 20 anos soltou uma exclamação. “Fogo, essa gente está sempre nisso, não sabem fazer outra coisa? É impressionante!”.

Fiquei a olhar para ele e tentei explicar racionalmente (com um ar provavelmente irritante): São países que vivem na miséria económica e política, que passam boa parte do tempo em guerra, ou em guerras… Mas a maioria dessas populações, se as deixarem, farão a sua vida normal quotidiana, trabalhão, irão à escola, nascerão, viverão, amarão, percorrerão uma existência normal, se isso lhes for permitido.



Fiquei a pensar em alguém que me disse que basta ir a Varanasi, na Índia, para perceber que a vida não vale nada. Que uma existência humana vale menos que a de uma vaca… Que não somos nada.

Há um livro biográfico, que relata uma história verdadeira e se chama Três Chávenas de Chá. É sobre um norte-americano, que, de estudante a alpinista, de montanheiro a aventureiro, acaba por dar consigo a construir uma escola no Paquistão, nos anos 1990. E depois outra, e mais outra. Cinquenta e cinco. Especialmente dirigidas para as meninas, as raparigas…

No mesmo país que viu nascer e prosperar os talibãs e a Al-Qaeda, que odeiam a liberdade, subjugam, dominam e espezinham as mulheres. Quando Greg Mortenson, autor e protagonista da história e do livro, se decidiu a construir a primeira escola, não tinha um tostão. Tinha que viajar para o Paquistão, comprar material, contratar uma equipa e pôr de pé uma escola. Era uma, mas acabaram por ser 55. E dar origem a uma das mais importantes obras humanitárias das últimas décadas.

Não me lembrei de contar isto ao rapaz de 20 anos com quem conversava sobre o Paquistão. Mas posso garantir com toda a certeza que com este livro todos nós temos imenso a aprender. Acaba com um homem daquela região do Mundo a dizer a Greg qualquer coisa como: “Estás a ver aquelas montanhas de pedra? Vamos transformar aquelas montanhas em escolas”.


in, http://cronistasemabrigo.com/index.php/2016/06/04/vamos-transformar-aquelas-montanhas-em-escolas/