sexta-feira, 16 de junho de 2017

A MOSCA (Uma História Hospitalar)

  • LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)                                                                


"Todos naquele serviço sabiam, desde o seu penoso processo de integração, o significado daqueles audíveis varejares: quando pousa a mosca no doente, é certa a morte do paciente; e se a mosca é varejeira, tens morte reta e ligeira."


"Cada mosca faz sua sombra." 
( Provérbio Português )

Eram mais ou menos quatro e meia, a hora forte das visitas, quando, em plena enfermaria, a mosca zumbiu. Os corredores, os cuidados intensivos, as macas, o armazém, a já falada enfermaria, os quartos, o refeitório, a farmácia, a unidade médica, o balcão, os infetados, a esterilização e todos os outros espaços hospitalares que não há necessidade de aqui referir estavam à cunha.

«Anda por aí mosca. Viste-a?» Disse a enfermeira muito gorda.

«Vi. Não é só mosca. É varejeira.» Acrescentou o auxiliar dos vários pírcingues e dilatadores, bastante interessado. «E é das verdes!»

Todos naquele serviço sabiam, desde o seu penoso processo de integração, o significado daqueles audíveis varejares: quando pousa a mosca no doente, é certa a morte do paciente; e se a mosca é varejeira, tens morte reta e ligeira.


De avental posto e luvas calçadas, com pés de celofane, touca e máscara a condizer, ficaram ambos à espreita e a ver em que cama pousava o inseto.

«Vai ser no dezoito preto.» Apostou o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores. «Os gajos de África atraem-nas e o velho já anda todo amorfinado.»


«Percebes lá disto! Eu jogo no vermelho, o doze, sabes qual é, não sabes? Aquele que entrou todo desorientado a gritar contra os que estão a dar cabo do sistema seminacional de saúde e que levou logo com a dose mágica de amonioxilosinomida do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. Ficou logo todo entubadinho, a ventilar, o gajo. E ainda é novo!»

A enfermeira muito gorda não se tinha apercebido que o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço acabara de sair da sala dos médicos e, mesmo bocejando e ainda esfregando os seus olhitos de lémure, ouvira toda a conversa. Dá meia volta sobre os calcanhares e, de forma autoritária para a enfermeira muito gorda e para o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores, remata subtilmente: «Profissionais experientes como são, com idade para terem juizinho e estão aqui neste palácio da saúde com tal tipo de conversas? Que gentalha! Com parva superstição popular sem fundamento científico nem comprovação estudada! Isso é um mito!»

«Deixe-se de discursos, ó doutor. Venha ver. Rápido! Aposte já! A vareja já entrou na unidade!» Sibilou excitada a enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha, já de olhos fixos na brachycera voadora, e que se havia achegado ali mal a conversa começara. «Digo eu que ela vai assentar é na velha. Aposto que é mesmo naquela escara mais amarelada.»

Farto da crendice popular, o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço gesticulou nobremente e voltou as costas aos rápidos ésses que a mosca descrevia naquele etéreo ambiente hospitalar, onde rasgava o éter com asas mestras. Erro crasso. A varejeira guina à última da hora junto à algália do dezoito e sem apelo nem agravo aterra na farta cabeleira do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. O académico ainda se sacudia nervosamente e já os outros três, os menos académicos, fundiam as vozes preocupadas num prolongadíssimo: «Oooooooh, doutor!»


Sem tempo para mais comentários, a unidade rebenta num aparato de “Pi-pi-pis”, “Ué-ué-ués”, “Ti-nó-nis” e outros sonidos típicos da emergência, em face da paragem encefalocardianorrespiratória do doze da amonioxilosinomida. O camarada, mesmo sem o pouso da varejeira, estava a bater a bota.

«O carrinho! O carrinho! Tragam o carrinho!» Gritou muito profissionalmente o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. Também muito profissionalmente, estacou de seguida, olhou enviesadamente para o processo do paciente e tornou a bradar profissionalmente: «Ai, que este é para investir! Carrinho com desfibrilhador, por favor!»

Estando o carrinho da unidade médica na manutenção, surge, em passo de corrida de velocidade, e vinda dos findos do serviço e dos fundos do feicebuque no aifone, a enfermeira estagiária do beicinho caído – empurrava desaustinadamente o carrinho de emergência suplente: «Aqui tá ele! Aqui tá ele! E tem desfrilhibador!» – que a miúda era mexida e esforçada mas suavemente disléxica.

Todos nas suas estudadas posições desarrumam o carrinho às pressas: o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores a posicionar e a desabotoar o doente; a enfermeira muito gorda a esventrar seringas ao plástico e a injetar dose reforçada de potassioxilosinomida; a enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha a ligar à corrente o desfibrilhador e a elevar a voltagem para números dignos de quadro de alta-tensão; o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço a besuntar as pás do desfibrilhador com um unto qualquer facilitador da passagem da corrente elétrica e a esfregar rotativamente as ditas uma na outra; e a enfermeira estagiária do beicinho caído a tirar apontamentos.

Vai daí que então o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço grita em inglês americano: «Clear!» 

E os restantes, entreolhando-se nos seus oito sobrolhos franzidos, perguntam-se que raio de ideia quer o homem transmitir com aquele estadunidense berro. Estatuam-se no encerado piso hospitalar, viram-se para o da bata e dizem em coro: «Quê?»

«Clear, pá! Clear!» Repete enfurecido o médico com aquela pausa destruidora da sua ospícia performance. «Toda a gente sabe que se não se gritar “Clear!”, o desfibrilhador não surte aquele encadeado de efeitos dos filmes: o ligar à corrente, “Zuuuut”; o encostar na peitaça, ”Poop”; e ondulado horizontal do doente eletrificado, “Papom”!» Disse. «Sejam rigorosos! Atuem como se este comuna fosse da vossa família, porra!»

A enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha achou aparvalhada a atitude cinematográfica do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço e ameaçou que iria descrever com frases e ilustrações coloridas toda aquela idiotice caso o homem não lhe passasse para as mãos as pás desfibrilhadoras e a deixasse continuar o salvamento do doze. Os outros acenaram afirmativamente manifestando união decisória no trabalho, sentimentos de pertença à classe e orgulho na ordem. Com o médico a teimar que queria todos “Clear!” dali para fora e com a enfermeira-chefe a jogar-lhe, primeiro uns olhares endemoninhados, e, logo depois, umas unhas felinas às pás. Vai que puxa um para aqui e repuxa o outro para acolá e arrebanha um para acoli e apanha outro para lá, até que as bases de metal besuntado das pás do desfibrilhador desandam uma para cada um dos mamilos do clínico e descarregam-lhe pelo corpanzil abaixo aquela corrente elétrica primordial, gémea pouco mais enfezada que aquela sentida aquando do nascer do tempo e do espaço. 


A sola do sapato italiano, incapaz de conter a velocidade daquela luz, descoseu-lhe a vida por ali abaixo num instante mais rápido que um penso, e ao tombar em cima do doze, «Ó milagre dos milagres!», devolveu à vida o marxista-leninista. Com o resto dos membros da equipa – os que ainda se encontravam vivos – a socorrer e a felicitar o camarada, junto ao chão, quase encostada ao estetoscópio, ainda se ouvia rugir incontida a enfermeira-chefe do casaquinho azul de malha: «Pasca aí, ó javardo! É assim que se salvam as pessoas, burgesso!»

Enquanto a mosca, a verdejante varejeira, adejava sorrateiramente pela janela mais próxima em direção a uma outra qualquer instituição de saúde – pública ou privada.


Pedro deCampos (8.12.2014) in "LiteraDura do ProleTariado"


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