segunda-feira, 5 de junho de 2017

COUVES, por Miguel Esteves Cardoso


Pelo Humor de Deus!


"A mania do «Campo» leva gente civilizada a pegar na enxada, a comprar casas remotas, a acender candeeiros de petróleo e a fazer todas essas outras coisas das quais os antepassados, ao virem para a cidade, conseguiram legitimamente fugir. Outra coisa que fazem, evidentemente, é plantar couves galegas e portuguesas ao desbarato."

Se fosse cineasta e quisesse fazer um filme de terror, não hesitaria em escolher como principal personagem, a couve galega. Entre as espécies botânicas rádio-mutantes, não há nenhuma tão grotesca, tão tenaz e tão assustadora.

A invasão das couves galaico-portuguesas, alastra-se com cada ano. Durante o tempo que demorou a ler o primeiro parágrafo, mais cinquenta e duas couves nasceram. Mais cinquenta e duas (agora cinquenta e seis) iniciaram o seu lento e intratável crescimento. Tornar-se-ão em autênticas árvores, com talos grossos do tamanho de troncos, brotando folhas enormes e impermeáveis, capazes de chibatar no flanco de um pobre burro e passíveis até de servir de revestimento eficaz a uma moradia.

Qualquer estação de serviço com dois metros quadrados de terra lhes serve. À mínima provocação, na mais pequena nesga de terreno, os portugueses plantam couves galegas. Não faltará muito tempo para vermos estes monstros a irromper dos buracos das calçadas, a abrolhar nos vasos das salas de espera dos consultórios e a rebentar, aberrantes de pujança e de seiva, nos átrios dos nossos melhores cinemas. Qualquer cidadão tem o direito, e até a obrigação, de estar bastante nervoso.

A proporção de couves galegas que serve para alguma coisa - para sopas regionais e pratos típicos - é extremamente reduzida. Por conseguinte, as couves vão singrando e reproduzindo-se sem impedimento humano. Há hoje talos que causariam problemas graves à mais poderosa serra eléctrica. 


Embora finjam estar «doentes» (daí a aparência
Brassica Oleracea Acephala

(orgulhoso espécimen com 3,50m,
em Vila de Cano, Sousel)
repulsivamente ratada das folhas), na verdade é apenas um vil estratagema, acertado em cumplicidade com «lagartas» e pardais com perversões alimentícias, para nos fazer crer que não se vão desenvolver mais. Mas desenvolvem-se. Disso podemos estar todos certos.

Sociologicamente falando, por assim falar, sociologicamente, há uma razão que poderá ajudar a explicar este Inferno Verde que ameaça cada vez mais as cidades e arrabaldes do nosso país. A razão diz respeito ao fenómeno dos Novos Camponeses. Trata-se de uma estranha nostalgia atávica que afecta os citadinos de hoje, levando-os a imitar o comportamento dos antepassados camponeses. A mania do «Campo» leva gente civilizada a pegar na enxada, a comprar casas remotas, a acender candeeiros de petróleo e a fazer todas essas outras coisas das quais os antepassados, ao virem para a cidade, conseguiram legitimamente fugir. Outra coisa que fazem, evidentemente, é plantar couves galegas e portuguesas ao desbarato.

Antigamente «a Terra» era um lugarejo longínquo e atrasado, repleto de lobos e lagares, onde as criadas iam passar as férias. Hoje os portugueses das cidades, que até há pouco tempo davam graças a Deus de não ter uma «terra», sentem a necessidade de inventar uma «Terra». Só porque os bisavós isto e a vista para a Serra aquilo, reconstituem os hábitos das criadas para poderem «ir à Terra». No fundo, o que eles fazem é ir para a Província, apesar desta palavra justa ter sido recentemente proscrita. A Província hoje chama-se «Regiões», e não há nada mais na berra do que as regiões.

Os novos camponeses usam invariavelmente «Kispos», que são uma memória plástica das samarras e daqueles casacos feitos de palha que têm um nome que é suposto sabermos, sabe-se lá porquê. Falam do «Campo» como se o tivessem descoberto. No tom que se admitiria a Vasco da Gama à chegada a Calecut, falam das «tasquinhas giríssimas» que descobriram, da velhota a quem compram as alfaces, da vista para as serras e para os rios e praticamente da vista para todo o lado. Cada um tem o seu local «secreto» que «descobriu», o que estaria certo se assim permanecesse. Secreto, em vez de indiscretamente propagandeado na própria cidade de onde dizem ser tão importante «fugir».

Os Novos Camponeses concordam com a couve galega. Podem considerar-se, para todos os efeitos, colaboracionistas. As matas densas de couves, florestas mais meretrizes que virgens, são a vingança do Campo sobre a Cidade. O roçar horrendo das folhas umas nas outras, num linguajar vegetal provocado pelo vento e pelos escapes dos automóveis, sussurra aos transeuntes: «Julgas que nos escapaste, mas não escapaste, toma lá pinhões.» São pinhões que somos forçados a tomar por termos abandonado a existência rude, desconfortável e entediante que é um dos principais encantos do Campo.

É por isso que mesmo na Lapa há couves galegas, tapando a vista até aos segundos andares, em quantidade suficiente para encher o Tejo de caldo verde. Para não falar nas galinhas, nos coelhos e noutros animais selvagens a que algum humorista popular, num momento de péssimo gosto e desrespeito religioso, chamou «criação». Os galos, sobretudo, é preciso denunciar.. Começam a gritar ás quatro da manhã, naquela estridência despropositada e satânica que aquele mesmo humorista chamou «cantar». Numa cidade europeia, os galos só se apresentam «au vin». Um galo vivo é uma aberração. Os únicos bichos que se deveriam consentir vivos numa metrópole são aqueles capazes de obedecer a ordens humanas. O excedente deveria ser forçosamente repatriado para a Província, naquelas carruagens de campo de concentração que se vêem no cinema.

Nesta selva de couves, de criação, de «Kispos» e botas alentejanas, cada vez é mais difícil descobrir a cidade. A couve galega é o símbolo. É preciso inventar um veneno anticouves. Até esse dia entorne-se-lhe uma bica junto das raízes. Não lhes faz nada bem.

in, A Causa das Coisas (1986) Assírio & Alvim, 4.ª ed., 1987, Lisboa, pp. 73-5 


Sem comentários:

Enviar um comentário