quinta-feira, 15 de junho de 2017

AVENTURAS DE BASÍLIO FERNANDES ENXERTADO, por Camilo Castelo Branco


Pelo Humor de Deus!


"Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um i; mas se lhe tirassem a pinta ao i, chamava-lhe o. O mestre seguia o sistema de pancadaria, sistema o mais racional de todos com cabeças daquele feitio."
I.
Nasce o Herói. A Cabeça e as Espertezas do Mesmo

Basílio Fernandes é um sujeito de trinta e sete anos, com senso comum, engraçado a contar histórias da sua vida, activo negociante de vinhos no Porto, amigo do seu amigo, e bastante dinheiroso - o que é melhor que tudo já dito e por dizer.

Seu pai chamou-se José Fernandes, por alcunha o Enxertado. Pegou-lhe a alcunha, porque, sendo ele natural de uma aldeia de Trás-os-Montes, quando já era caixeiro, muitas vezes dizia aos seus companheiros de passeata, aos domingos: «O Porto é boa terra; mas lá como o Enxertado, ainda não pus os olhos noutra!». A caixeirada, menos sensível à saudade das suas aldeias, ria do moço, e, por mofa, lhe chamava o Enxertado, alcunha que ele ajuntou aos seu nome com honras de apelido. (...)

Basílio foi o primogénito e único. Nascera muito gordo e extraordinàriamente volumoso. Tinha a cabeça igual ao restante do corpo, e uns pés dignos pedestais do capitel da irregular coluna. Em quanto ao tamanho descomunal da cabeça, foi isto motivo para muitas alegrias em casa; no parecer daquela mãe ditosa, a grandeza da cabeça era sinal de juízo, e o tamanho das orelhas correlativas sinal de bom coração. O pai, como não tinha ideias suas acerca de orelhas, abundava nas de sua mulher, posto que de via certa soubesse por um mau vizinho da porta dissera que o seu Basílio era aleijado, e sairia com orelhas de burro, se se demorasse mais três meses no ventre materno.

A casa do merceeiro ia um frade carmelitano de óptimos costumes, ainda parente transversal da senhora Bonifácia. Era opinião de frei Silvestre do Monte do Carmo, que a volumosa cabeça do menino significava talento. Este prognóstico abalava medìocremente os ânimos dos pais, que não sabiam o que era, nem o para que servia neste mundo o talento. (...)

José Fernandes, como o filho tivesse oito anos bem espigados, comprou-lhe um A B C, e foi levá-lo à escola. Era a cabeça de Basílio, no dizer do mestre, muito mais dura, e tapada, e maior que a bola de pedra da torre dos Clérigos. Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um ; mas se tirassem a pinta ao i , chamava-lhe o. O mestre seguia o sistema de pancadaria, o mais racional de todos com cabeças daquele feitio. Basílio entrava em casa a chorar, a mãe saía de mantilha a descompor o mestre, o mestre, exauridas as razões, descompunha a senhora Bonifácia, e assim andaram, ora melhor ora pior, até que Basílio aprendeu o abecedário, às direitas, às avessas e salteado. (...)

Naquela idade, entre os dez e onze anos, parou de crescer a cabeça de Basílio. Fenómeno, certamente! (...) Quem deu primeiro por isto foi a discreta senhora Bonifácia, observando que o chapéu braguês dos nove anos lhe ajustava perfeitamente aos onze. Esta razão não é tão judiciosa como parece ao primeiro lanço; o ponto de apoio do chapéu de Basílio eram as orelhas; todos os chapéus lhe assentavam bem, contanto que as orelhas não ficassem inclusas, o que seria impraticável, sem dar ao chapéu a forma de uma canoa transversa.

Que a cabeça não cresceu desde os dez até aos dezanove, isso vê-se e mostra-se, apesar da ciência, na série de chapéus correspondentes aos decorridos nove anos, chapéus, que Basílio conserva, datados no forro, por mão de seu tio frei Silvestre, que, nos últimos anos de sua vida, não estudou senão a cabeça do sobrinho, e a estrada da salvação de três confessadas suas, cujo herdeiro ele foi.

Este fenomenal pousio da cabeça exterior parece que, no interno, foi causa de fertilização igualmente pasmosa! Basílio aprendeu a ler, desmentindo o mestre, que apostava pela irremediável negação do idiota. Em escrita, particularmente no bastardinho, deu invejas aos mais louvados condiscípulos. Em contas, desde as quatro operações até quebrados, foi um pasmar de rapidez e inteligência! Era um reviramento completo!

Agora, diremos de fugida algumas outras espertezas de Basílio Fernandes Enxertado nesta sua puerícia e começos de adolescência. (...)

in, Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (1863) Parceria A. M. Pereira, LDA, 6.ª ed., 1966, Lisboa, Colecção Obras de Camilo Castelo Branco (vol. LXVII) pp. 5-9 


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