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terça-feira, 26 de dezembro de 2017
AUTOCLISMO vs. AUTOCLISMOS ( Je Suis WC, Almada )
O primeiro autoclismo de que me recordo era da marca Dilúvio. De um reservatório junto ao teto pendia uma corrente metálica e um puxador. O meu pai tinha-o pintado de prateado. Era uma lindeza! Depois, discretamente, sucedeu-lhe o Hipólito. Com reservatório encastrado, dava ares de inocente botãozinho de mola no topo de um só tubo em aço inoxidável. De três em três anos, aproximadamente, exteriorizava-se em nascentes ferrosas por dentre as juntas dos azulejos. Um pantanal! Já em pleno segundo milénio desagua-nos lá em casa o Sanitana. De virginais e radiantes cerâmicas mas com um nome que não entusiasma ninguém, parece mochila de loiça sem alças, carregada quase sempre em grande esforço. Que disparate!
segunda-feira, 25 de dezembro de 2017
A BERNARDETE (uma história em auditório)
- LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)
"O burburinho inicial que se fez logo morrinha de aplausos, cedendo lugar a uma bátega de vivas e caindo num trovejo de urros e gritos, não davam espaço às dúvidas iniciais de Noémia de Valente Albernoz ou dos presentes mais relutantes, que, encharcados de emoção aprovavam, assim num relâmpago, a mais jovem das palavras portuguesas."
"A causa ruim, palavras sem fim."
( Provérbio Português )
XXXVIII Congresso Nacional de Linguística
(aos vinte sete dias do mês de julho do ano de mil e dezasseis)
Aquele fenómeno não tinha precedentes. Passar sem documentá-lo ou não divulgá-lo era quase um crime contra a humidade, um hominídeo em primeiro grau. Não demorei um fósforo a decidir-me: além de já ter despachado o paper pelos habituais meios de comunicação, iria incluí-lo nas minhas mais concorridas conferências do périplo europeu. Naquela véspera, no quarto do hotel, sabendo de antemão do incêndio linguístico que estava prestes a cuspir, acordei ensopada em suores etimológicos e urinei um léxico muito concentrado, fétido e de tons realmente assustadores – algo pouco habitual na minha longa e experiente vida académica e de dedicação à linguística.
Às dez da manhã, já sou eu, Noémia de Valente Albernoz, saia-casaco, pasta-sapato e broche-echarpe requeridos pela etiqueta, perante quase dois mil no centro de conferências. Depois dos aplausos e pigarreios, dos centros de mesa e dos copos de água, dos diz que disse e dos escreve que escreveu, discorri:
«Os nomes taparuére, lambreta ou botox são tão comuns quanto bem conhecidos de todos os portugueses. Mas nem sempre assim foi. Tempos houve em que esses nomes mais não eram que irreconhecíveis substantivos próprios, simplórias nomenclaturas comerciais para os produtos que então se apresentavam às gentes. Nessa época, trancada que ficou no século passado, palavras como chiclete, cotonete ou gilete eram tão conhecidas e prontamente descodificadas como hoje em dia também não o são alguns interessantes vocábulos novos, como o ondulante tolitinolobruprofeno, nomeando analgésicos em cápsulas naturais revestidas a tripa para absorção lenta ao nível do intestino, ou o atualíssimo i-not, que nos oferece finíssimos caixões em cerejeira.
No entanto, percebemo-lo hoje claramente, não são raros os casos em que passar de nome próprio a nome comum é, na verdade, uma espécie de progressão na carreira comercial dos substantivos de consumo, mesmo que tal implique a queda ou a perda de alguns fonemas no longo caminho percorrido até ao apalavrado estrelato da rentabilidade.
Se nos casos da americana farinácea maizena ou do caldoso knorr alemão tudo mudou no produto desde o seu nascimento mas ficando os nomes para sempre iguais, o mesmo não sucedeu com alguns dos produtos já acima referidos, especialmente no que concerne àqueles cuja terminação contém a perfumada fonia éte – soando algo afrancesados mas, na realidade, carregados de anglicismos norte americanos.»
Ouvem-se muitos ós de espanto no anfiteatro. Noémia continua, imperturbável:
«Por cá perdendo o ésse mas ganhando um é final, tal qual garoupa que muda de sexo conforme convier à espécie, a controversa chiclete é mastigada por ambos os sexos sem descriminações: mesmo que seja feminina em Portugal – a chiclete –, enquanto se masca masculina no Brasil – o chiclete. Na nuvem lusofónica também lhe chamam chuinga, gâme ou pastilha elástica, mas, por lhes faltar a sensualidade vocálica que abunda em chiclete, nunca tiveram direito a uma canção pop no top, tal como sucedeu a esta.»
Olham-se desentendidos os mais novos. Riem-se os quarentões e os ainda mais velhos. Bebe dois golos de água e prossegue firme como um mineral:
«Cotonete também gera confusões. Igualmente americano de nascença, aparece por cá, contudo, assim mesmo redigido, com a sua forma escrita não perdendo nem ganhando na grafia ou na fonia; mas, se comparado com a mais modelada cotonnette francesa, vai que entre Paris e Lisboa perde nos énes e desvaloriza nos tês. Ainda incrementa a confusão porque, servindo tanto ao macho como à fêmea, também pode o nome variar do masculino para o feminino – e mesmo assim o pavilhão auditivo continuar asseado. Não é invulgar ter-se na casa de banho um gaiato a escarafunchar com um cotonete e em simultâneo, no quarto de banho, uma moça a fazer rodopiar uma cotonete; mas tal preciosidade linguística já vai rareando neste reino tão enfermo de palavras duma mesma família.
Curiosamente a gilete tem também história complexa. Chega da América deixando naufragados no Atlântico um éle e um tê, e embora se inicie com uma singela lâmina, hoje em dia escanhoa com um recorde de sete chapas de aço – oito, se se tiver em conta a afiada folha especial para delapidar patilhas. Aparece, nos primórdios, para tornar o rosto dos mais rijos homens em imberbes rabinhos, mas logo passa a rapar também as pernas, as coxas, as virilhas (e suas continuações) e as axilas das senhoras, e também os seus bustos e faces nos casos mais dramáticos. Mais tarde, jogam-se às pernas de ciclistas e de nadadores profissionais, de ambos os sexos, para que estes atletas possam deslizar várias milésimas de segundo abaixo do esperado nos respetivos ambientes competitivos. Já neste século raspam-se para as peitaças, os coros cabeludos, as costas, os sovacos, as virilhas outra vez, os escrotos púdicos, os esgotos púbicos e os esforços públicos de todo e mais um qualquer espaço peludo de gajo ou gaja sem exceção. Tal como vem sucedendo no duelo entre a lâmina manual e os modelos elétricos mais recentemente nascidos, o nome também tem resistido às muitas mudanças nos hábitos pilosos do humano ocidental, mantendo-se teimosamente como substantivo feminino em qualquer lugar do mundo ou em qualquer canto do corpo.»
Assenta-se na plateia com a cabeça em movimentos verticais. Há mãos que confirmam as afirmações passeando dissimuladamente em algumas partes do corpo: uns por vales bravios; outros por planaltos desbravados. Com um leve tremor de lábios, adivinha-se o final:
«Felizmente, com mais ou menos vogais e consoantes, estes substantivos generalizaram-se como nomes comummente aceites, não sendo assim necessário, por agora, pedir ao balcão do café uma goma de chicle aromatizada com frutos silvestres, dizer-se que já nos estão a acabar os aparelhos de barbear compostos por duas peças onde se encaixa pelo menos uma lâmina, ou pedir à mãe que nos passe nas orelhas duas ou três hastes flexíveis com ambas as pontas revestidas por algodão para fins higiénicos ou não.
E, não obstante a imensidão existente destas palavras, até eu, Noémia comum que sou nas horas vagas, calço crocs, corro de licra, conduzo um jipe, cozinho em pirex, lamino a inox e talvez não venha a resistir aos encantos do botox. Até eu, dizia, sinto um especial e acrescido carinho por estes nomes que me vêm acompanhando há mais ou menos idades, especialmente pelos afrancesados terminados em éte, graças à minha formação inicial nas literaturas francesas mas mais ainda pelo meu linguajar de alcova.»
Com um arquejar trémulo, suspende os presentes por um fio, indiciando na voz pausada uma trovoada neológica:
«E é assim, com deleitado e linguarudo prazer, que muito gozo em apresentar-vos o galicismo que já anda nas bocas do mundo, que já sussurra aos ouvidos da Terra, tornando oficial a passagem de substantivo próprio a nome comum (para efeitos comerciais), do neologismo bernardete.»
O burburinho inicial que se fez logo morrinha de aplausos, cedendo lugar a uma bátega de vivas e caindo num trovejo de urros e gritos, não davam espaço às dúvidas iniciais de Noémia de Valente Albernoz ou dos presentes mais relutantes, que, encharcados de emoção aprovavam, assim num relâmpago, a mais nova das palavras portuguesas.
À saída do auditório, com um sorriso rasgado pelo triunfo, Noémia declara às televisões que não mais a largaram desde a sua apresentação:
«Não há agora cidadão que não sonhe, deseje, suspire, grite durante o sono ou até que mate por uma bernardete. Os muitos portugueses que não podem comprá-las, lá se quedam imaginando-se servidos à mesa por uma bernardete, vestidos de manhã por outra bernardete, de cabelos escovados ao deitar pela terceira bernardete, leve-me as crianças ao colégio, Bernardete, reveja-me este discurso, bernardete, não se esqueça dos depósitos nas Caimão, bernardete, e as ações?, venda, bernardete, venda, venda-se barata, Bernardete, venda-se pelo salário mínimo, bernardete, foda-me com força, Bernardete, foda-me todo, foda-me a tempo inteiro no seu quartinho dos fundos deste palacete magistralmente imaginado e, vá lá, pode ir que eu deixo, regozije-se com o namoradinho no seu único meio-dia de gozo mensal.»
«Já encomendou a sua bernardete?» Pergunta um arrojado microfone em riste que, à falta de resposta, vira-se para a câmara e termina o direto:
«E assim dramatizam os portugueses as melhores cenas das suas vidas, idealizando um infinito crescimento económico enquanto brincam aos ricos nas suas casas hipotecadas até aos algerozes, com a bernardete que nunca hão de alcançar.»
Pedro deCampos (11.6.2017) in "LiteraDura do ProleTariado"
sexta-feira, 28 de julho de 2017
AS REDACÇÕES DA GUIDINHA: O CAVALO, por Luís de Sttau Monteiro
Pelo Humor de Deus!
"o cavalo também é bom para bifes mas a minha mãe diz sempre que são de vaca porque senão a Vovó não come lá porquê não sei porque come fressura e isso é que eu comia nem que lhe chamassem lombo de vitela"
O cavalo é um bicho que tem quatro patas e carroça mas há cavalos que não têm carroça porque fazem corridas mas quem leva a taça são uns homens pequeninos que andam em cima deles e há os cavalos das touradas e o senhor Francisco que o meu Pai diz que é o maior cavalo que ele alguma vez viu e os cavalos dos cow-boys que conhecem os assobios dos donos e salvam-nos quando os índios os estão a matar e o D. Afonso Henriques tinha um cavalo porque os reis andavam a cavalo só os presidentes é que não sabem montar e nas batalhas o rei D. Afonso Henriques ia todo vestido de rei que é um fato de lata e entrava à espadeirada aos inimigos que fugiam dele não sei porquê e o cavalo também é bom para bifes mas a minha Mãe diz sempre que são de vaca porque senão a Vovó não come lá porquê não sei porque come fressura e isso é que eu não comia nem que lhe chamassem lombo de vitela o cavalo tem pêlo curto e faz uns pupus que parecem pastéis de bacalhau mas não são e por isso é que é preciso ter cuidado porque se uma pessoa se engana pode ficar atrapalhada uma coisa que eu sei é que há uns cavalos que têm o rabo penteado aos quadradinhos esses são da Guarda Republicana que é uma guarda que quando os cavalos morrem corta-lhes os rabos para usar nos chapéus também sei que os cavalos não põem ovos o que é uma pena porque se pusessem um ovo estrelado ele dava para uma família inteira mas há nos cafés uma coisa que se chama bife com um ovo a cavalo e está-se mesmo a ver que o bife é de cavalo eu sei porque o meu pai levou-me a comer um num café e tinha muito molho e muitas batatas o que tinha era pouco bife os cavalos são mamíferos porque mamam mas não sei aonde já as espreitei e não as vi se calhar ficam debaixo do selim outras coisas que os cavalos têm é umas palas do lado dos olhos para não verem para o lado se as pessoas também tivessem não viam as montras e as coisas não se vendiam cada vez há menos cavalos e é pena porque eu gosto de os ver fazer pupus como pastéis de bacalhau coisas que os eléctricos não fazem eu não sei porque é que me mandaram fazer esta redacção de cavalos são lá coisas do director da escola que se chama Pires e tem manias mas já está feita só falta um parágrafo para encher o espaço todo

cá está ele
e mais um
e outro
e mais outro
e acabou-se
in, Redacções da Guidinha (1969-70) Ática, 1.ª ed., 1971, Amadora, pp. 35-8
segunda-feira, 24 de julho de 2017
PÚDICO vs. PÚBICO vs. PÚBLICO ( Je Suis WC, Porto)
O pelo classifica-se em três categorias distintas:
pelo púdico, pelo púbico e pelo público.
O púdico perdi-o lá pelos dezoito;
o pelo púbico perco-o desde os doze;
pelo público só durante os dois anos que fiz naturismo.
Perdido o pelo, perdido o costume. E a ética e a moral.
Sem o pelo já ninguém distingue o púbico do público do púdico.
O fim de uma inteira civilização às mãos das cabeleireiroesteticistas
e suas faixas de cera fundida a quente.
segunda-feira, 3 de julho de 2017
CHAVAL, por Alexandre O'Neill
QUE VERGONHA, RAPAZES!, por Alexandre O'Neill
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in, Pelo Humor de Deus! |
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist'? Viii!»).
Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:
Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Snr. O'Neill! E... as varizes?
in, De Ombro na Ombreira (1969) reunido em Poesias Completas, Assírio & Alvim, 5.ª ed., 2007, Lisboa, p. 272
quarta-feira, 28 de junho de 2017
A PRESSÃO d'AR (uma história em armazém)
- LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)

"Quem as arma que as desarme."
( Provérbio Português )
Naquele início
do ano de noventa e cinco, eram constantes os riscos que se corriam no
gigantesco armazém de venda e distribuição de artigos para pesca e caça, onde o
jovem Vital da Silva, com ainda dezassete aninhos, se estreava no mundo do
trabalho. O rapaz arrumava, limpava e carregava arduamente todo e qualquer
utensílio que se pudesse encaixotar, vender ou comprar, enquanto aspirava
vagamente à profissão de fiel de armazém. Parecia ao moço que, com relativa
facilidade, poderia ser fiel ao armazém da Pesca&Caça,S.A.. Dos perigos que
espreitavam para lá de cada estante, ainda nada suspeitava.
Naqueles
dias felizes, a loja tinha sempre clientes e o serviço não conhecia pausas. E
isto muito convinha ao Vital pela sua extrema necessidade em se manter ocupado;
caso contrário, insuflava-se-lhe a veia criativa. Fácil também é de entender,
pela leitura dos protocolos e regras de armazenamento, que tal capacidade
inventiva não encaixava com eficácia no espaço físico daquele entreposto
comercial.
E, mais
palete menos palete, foi exatamente o que acabou por suceder.
Passados
alguns meses de árdua colaboração entre patrão, chefes, escriturários, fiéis de
armazém, carregadores, camionistas, caixeiros, vendedores, contabilistas e
ajudantes, começaram a ser evidentes, nos estreitos e pouco ventilados
corredores da Pesca&Caça,S.A., os primeiros sinais de alguma desaceleração
económica gerada pelos anos finais (era o que então se julgava) do cavaquismo.
A pica dos capitais europeus, muito mais fraca e com cada vez mais
intermediários, já não dava o coice de antigamente, e muitos dos velhos
pescadores-caçadores-coletores que por ali negociavam antes, bebericavam agora
os dias no gim tónico das algarvias reuniões imobiliárias ou delambiam-se no
mamilo da liberdade chupando um contrato para mais outro campo de golfe de
agrícola interesse nacional.
Conjunturalmente,
o frenesi do armazém viu-se reduzido a tiros de pólvora-seca, verdadeira
amostra do engodo de outrora. Ao Vital, já a agonia lhe picava o anzol.
Com quase
nada para fazer, deu ao gaiatão em colecionar material de pesca. Colecionar é a
palavra correta porque o Vital nunca foi rapaz de faina: muito tosco de
motricidade, trabalhar com o fio de nylon
era mais um emaranhado passatempo que um real empate de anzóis; depois, a
minhoca metia-lhe nojo e do casulo chegava mesmo a sentir medo; e ainda havia
a, propriamente dita, problemática do peixe – não gostava de lhe sentir o toque,
e do qual, desde miúdo, não apreciava cheiros nem sabores. E assim, só pelo
puro prazer de inventariar utensílios e só pela pura necessidade de descarregar
a adrenalina contida, se deleitou neste verdadeiro desafio: uma febre desmedida
de armazenar em casa um exemplar de tudo o que existia em stock e que à exclusiva pratica pesqueira se destinava.
Não obstante
os mil perigos que corria, mais não fazia das oito às dezanove (e até mesmo
durante a hora de paragem para o almoço), que maquinar ou levar à prática os
mais rocambolescos esquemas para tomar de assalto os três andares de armazém
que compunham a Pesca&Caça,S.A..
O sorteio
diário, à saída, que impunha uma rápida revista corporal em apalpadelas
inocentes, obrigou às mais fantásticas estratégias de gatunagem: delapidou alguidares
inteiros com anzóis para todo o tipo de pescado, colados com fita adesiva da
cor da pele na parte de trás das orelhas; agadanhou quilómetros de fio das mais
variadas espessuras, emaranhando-os nos caracóis dos seus revoltos cabelos;
rapinou coleções inteiras de amostras coloridas, encaixando-as dentro do cano
das galochas em dias de serviço às casas-de-banho; subtraiu um carreto para mar-alto
e de alto calibre, despejando-o no lixo em dia de faxina e passando a apanhá-lo
de madrugada mesmo antes da noturna recolha dos monos; surripiou os mais
diversos tipos de guizos para ponteiras de cana, acolchoando-os nas pregas do
escroto e de modo a não tinirem com a passada; e ainda depenou uma dezena de
quilos de chumbadas de gramagem variada, enfileirando-as pelo ânus acima.
Corria-lhe
bem, a pesca. Navegava calmo nos estrados do armazém.
Enfunara a
vela do bom humor e bolinava-lhe já na ideia uma mirabolante técnica para bifar
uma cana de quatro metros e meio (o que não se apresentava como tarefa muito
difícil pois a ferramenta desdobrava-se facilmente em duas partes de dois e
vinte cinco), quando, inesperadamente, se desmotivou. Caído de novo na
melancólica desgraceira de ajudante fiel sem tarefa cativante, cabisbaixo se
quedou semanas a fio, sem apetite pela vida, entornando-se do trabalho para
casa e da casa para o trabalho, já sem o aquático jorro de outrora. E doíam-lhe
os dentes, também, até ao nervo alveolar inferior, enjoando noites a fio nas
covas das suas oito cáries a postularem por calafetagem estomatológica.
Numa
madrugada sem memória, em casa, enquanto preparava algo ruim com gelo para se
afundar na cama para sempre, escutou ao longe o arrulhar das velhas rolas que o
seu vizinho do rés-do-chão tanto estimava. Logo ali se estacou Vital, de olhos muito
arregalados junto ao frigorífico, e eis que milagrosamente lhe ocorre
dedicar-se à caça. «Ai as armas, as armas!» Quanto tempo havia perdido na
mariquice da caninha, do anzolzinho, da malinha, do banquinho e do lanchinho,
ignorando o verdadeiro desígnio da sua curta vida? «Arma ao ombro!», gritou, e
ali se decidiu a, a partir de então, matar e esfolar o seu próprio lanche.
Entretanto,
no armazém, alertados que estavam os patrões pela equipa da contabilidade sobre
os estranhos stocks piscatórios que
se evaporavam sem gerar resultados, apertaram as malhas da vigilância e da
revista, e ordenaram ao próprio Vital que se mudasse de vigilâncias e bagagens
para a secção do armamento. Porque temiam também aí as investidas da gatunagem
ou porque dele desconfiavam e queriam-no longe das pescas, não se chegou nunca
a saber. Soube-se só que foi erro crasso para todos neste enredo, mas que,
naquele precioso momento, deixou o fiel moço à beira de uma euforia
espampanante, camuflada no último instante pelo sangue frio que lhe corria nas
veias.
À tarefa que
lhe deram de fazer exaustivo levantamento das armas e munições presentes, de
olear os metais e as madeiras das ditas, e de verificar gatilhos e tambores a
todas, engatilhou-se-lhe na ideia testar os materiais e componentes. Ser mais
seletivo nas escolhas era agora o objetivo, não tanto pelas novas dificuldades
técnicas requeridas ao saque, mas muito mais pelo próprio amadurecimento da
personalidade. Estrategicamente se decidiu a começar pelas armas mais simples,
evoluindo a seu tempo em direção às mais complexas. A bisnaga, a fisga, o canivete,
a navalha, a catana, a zarabatana, o arco, a besta ou a pistola pressão d’ar
deliciaram-no, disparando jatos, cunhas, pedras, golpes, dardos, setas, flechas
ou chumbos em todas as direções. A pistola pressão d’ar requeria um traquejo
que depressa conquistou: recarregar os trinta chumbos no depósito fazia-o em
pouco mais de quatro segundos e para injetar no cabo a botija de cê-ó-dois que,
do tamanho de um polegar, manteria na arma a pressão alta, demorava apenas três
míseros seguros. E tornou-se a sua predileta.
Ei-lo,
então, Vital da Silva, menor de idade, doze anos de incompleta escolaridade,
aspirante a fiel de armazém, a ira estampada no rosto imberbe camuflado em
verdes e negras riscas, invariavelmente refundido e disfarçado, conquistando
terreno aos penhascos de caixotes num crescendo de voracidade pelos montes de
gavetas acima, explodindo autoconfiança entre os vales de prateleiras e ao
pontapé a tudo o que lhe aparecia pela frente. À cintura, uma bem engendrada
tira de grosso couro cravada com dezasseis caixas de quinhentos chumbos cada; no
peito e às costas, cruzadas à frente e atrás, duas largas cintas cartucheiras onde
se perfilavam encaixadas oitenta reluzentes botijas do gás pressionante; à
tiracolo, um par de binóculos; uma em cada mão, as duas pistolas em riste.
Se com as
primeiras oito silenciosas armas alarido algum havia feito, com a pistola, mesmo
sem o fogoso ruído da pólvora, muito começou a dar nas vistas. Para melhorar a
já de si aguçada pontaria, atirava rápida e repetidamente em alvos dispostos
por todo o armazém e rebentava em performances guerreiras rastejando, trepando
e furando tal comando no médio oriente. Os silvados dos chumbos e os baques dos
projéteis no metal, no cartão, no plástico e na madeira, atraíram a presença
dos mais diversos figurantes da Pesca&Caça,S.A.: primeiro uma dúzia de colegas
de hierarquia que, estúpidos com o que presenciavam, apenas se boquiabriram a
segura distância; depois vieram as chefias que, por funções a que os postos obrigavam,
gritaram que nem uns animais para que parasse com aquela fantochada; quase em
simultâneo, o vendedor mais premiado, o patrão e o seu secretário achegaram-se
também àquele piso onde raramente empoeiravam os sapatos, para questionarem a
algazarra.
«Ó Vital!?
Que é te deu, rapaz?» Arriscou perguntar num passo à frente o seu subchefe
direto, isto antes de ser atingido por dois chumbos, um de cada pistola, um em
cada olho, demonstrando com a cegueira imediata as virtudes atiradeiras do
moço. Ficou-se a perceber, de jorro, a enorme gravidade da situação ali
armazenada, quando começaram a gritar, uns, a fugir, os outros, e a gritarem e
a fugirem ao mesmo tempo, diversos deles. E desapareceram todas as dúvidas no
momento em que um dos chefes se decidiu a acudir o seu invisual subordinado quase-morto
e foi prontamente furado em cheio na têmpora, ficando a esvair-se num fino repuxozinho
de sangue.
E o Vital, que
ora gritava que nem um animal a ser sangrado, ora gargalhava louco com os
dentes arreganhados, depressa se esgueirou silenciosamente pelos túneis
acartonados e pelas pontes de cantoneira que conhecia como as palmas das suas
mãos, indo à caça dos restantes colaboradores e empregadores que em mais nada
pensavam que se porem a salvo daquela inexplicável selvajaria típica de escola
secundária norte-americana.

Com os
atropelamentos e os gritos e as correrias e os empurrões daquelas gentes
aflitas, e mais as quedas e os estrondos e as explosões dos objetos que
derrubavam e pisavam e incendiavam por onde passavam, o número de feridos e
mortos ia para além daqueles que o Vital provocava diretamente com as suas
supostas fracas armas. Mesmo assim, poderoso nas intenções e cada vez mais
enraivecido, começa o caçador a dirigir-se à zona dos escritórios de onde a
maior parte dos administrativos já se havia escapulido, não sem antes terem
alertado as autoridades e as outras instituições que costumam aparecer nestas
imagináveis situações. Lá só restavam o patrão e o seu secretário da
administração e de estimação, muito volteando atarantadamente, ambos, com
papéis, portáteis, títulos, certificados e outras traquinices típicas destas individualidades.
Abre cofre e fecha conta, tira saldo e limpa saco, rasga folha e dita ordens, offshora-se uma lágrima adamantina com elevado
índice de refração, e nem deram conta do clandestino aproximar do Vital
caçante.
Lá fora, as
barulhentas ambulâncias e os amarelos inemes
e respetivos bombeiros, enfermeiros médicos e doutores recolhiam e entrapavam
aqueles destroços de gente enquanto ensacavam os que já nem gente eram. Os
polícias normais mantinham o perímetro imaculado, afastando a empurrão a
curiosidade dos abutres populares e tratando de acalmar a preocupação dos
familiares das possíveis vítimas. As rádios, as televisões e os jornais, as
câmaras, os microfones e os telemóveis, os repórteres, os fotógrafos, os pivôs
e os média, escutavam quase uns
poucos e falavam mais que todos. Os polícias especiais das brigadas de
intervenção estavam de preto, hirtos e calados (os subordinados), e de preto,
hirtos e concentrados nas plantas do armazém, os subordinantes – todos se preparavam
para a ação.
Vital está completamente
alheio ao aparato exterior. Os olhos raiados de sangue almejam à distância as
costas das suas próximas vítimas. Lenta e silenciosamente, dissimulado pela
cabulagem elétrica do primeiro andar dos escritórios, trepa e arrasta-se pelas
cilíndricas condutas de ar condicionado até à divisão pretendida. Pendurado
pela tenaz força das pernas ao tubo ventilador, de cabeça para baixo, encontra
a linha de tiro perfeita para cilindrar mais dois. Injeta nas pistolas duas
novas botijas de ar comprimido – máxima potência de tiro. Verte no carregador
chumbos da melhor marca – mais probabilidade de perfuração. Com os seus olhos
de lince, tem alinhadas as alças e as massas de mira de ambas as pistolas às
carótidas das presas.
Com o
frenético ensacar do numerário, patrão e secretário nada pressentem sobre a
curta distância a que o fel se encontra deles. Nada desconfiam sobre a eminente
perfuração das suas veias e a consequente limpeza eterna das suas almas. Mas
saltam quando veem os primeiros agentes das brigadas de intervenção correr ao
fundo do corredor. E quando se apercebem do suspenso vulto da besta, camuflada,
invertida, rosto contorcido, olhos encarnados, armas eretas – a morte pendente
a pouco mais de seis metros de si –, correm histericamente também na mesma
direção.
Vital dispara
de imediato as pistolas pressão d’ar numa sincronização quase exata. Mesmo com
as vítimas em movimento, atinge patrão e empregado nas pretendidas zonas do
pescoço. Depois, derruba-os com os binóculos, aplicando-lhes uma repetição de
fortes golpes rotativos nos crânios. No chão, inanimados, os homens não sentem
o lento vazar do corpo, o sangue a correr vagaroso sobre os papéis, e sem
compreenderem que estão a ser assassinados com duas impensáveis chumbadas nas
carótidas externas.

«Quando era
miúdo, às vezes dava-lhe para chatear a gente. Vinha por trás e amandava tipo
pedras da calçada à cabeça da gente.» Confidenciava ao calção curto da jovem e
loira jornalista, um vizinho do Vital com mais dez ou quinze anos que o rapaz.
E ainda disse: «Mas a gente dávamos-lhe uns murros nas costas e uns pontapés tipo
na cara e a coisa ficava por ali. Pior foi quando ele se agarrou ao ácido…» A
jornalista, de microfone profissional, pergunta: «O Vital, tão novo, já era
toxicodependente?» E o vizinho: «Não, não! Ele era é do tipo independente. O
pai dele, que era o melhor pintor lá do bairro, também era muito bom a dar
porrada na família. Chegava passado a casa, muita bêbado, e vai tipo de
afiambrar na mulher, na miúda e no puto por porras sem jeito nenhum. Uma vez em
que o Vital levou dele com uma lata de tinta das de dez litros pelas pernas, todo
torcido, ainda agarrou numa de decapante e amandou-lhe com o ácido à tromba. O
cota, quando saiu do hospital – e teve lá quase seis meses –, parecia o Nikki
Lauda. O pessoal do bairro andou anos a falar na cena.» Cerrou os olhos devagar
e encolheu os ombros, expressando corporalmente um simples «É a vida!»
Foram oito
os disparos ouvidos pelos polícias que ficaram momentaneamente sem respirar e à
espera da queda final do jovem fiel armazenista. Com as armas já caídas a seu
lado, uma pistola à direita e outra à esquerda, tomba finalmente o Vital:
primeiro, violentamente sobre os joelhos, e depois, muito devagar, o resto do
corpo a descair para trás de encontro ao chão alcatifado. Os da ordem afastaram
logo as pressão d’ar, viraram o miúdo até à posição lateral de segurança e
sentiram-lhe o pulso. Estranhamente o seu coração batia calmo, forte e
compassado como o de um velho maratonista. Não havia sinais de ferimentos
externos ou internos. Estava apenas apático, de olhar vazio e com um ligeiro
esboço de sorriso nos lábios.
Sem qualquer
tipo de resistência, Vital da Silva foi despojado da sua camuflagem e munições,
algemado nas mãos e nos pés, colocado num reforçado colete-de-forças e
transportado em carrinha gradeada e de vidros foscos à prova de bala, em
altíssima segurança, para o único estabelecimento prisional psiquiátrico do
país. A saída do armazém fez-se de forma muito ordeira uma vez que, comunicando
os de dentro com os de fora, conseguiram espantar os populares que pretendiam
cheirar o massacre de perto. Algumas máquinas e câmaras indiscretas ainda
conseguiram fotos de baixa qualidade e uns poucos curtos filmes daquele jovem
rosto criminoso todo esborratado de verde e negro. Continuando sem expressão,
apenas apático e de olhar vazio, com um ligeiro esboço de sorriso nos lábios,
as fotos nada revelavam sobre o que se passava ou teria passado naquela mente assassina.
Menos de uma
hora depois, os telejornais das oito abriam com essas mesmas imagens e diziam
que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O
homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou
discriminadamente vários tiros de pistola pressão d’ar sobre colegas e patrão.»
Momentaneamente, o país ficava em choque traumático e com pouco mais reação que
um sussurrado «Meu Deus!» entre dentes.
Em
simultâneo com o pasmo de um país inteiro que pouco habituado vivia a estas extremas
violências internas, o jovem Vital da Silva, acorrentado nas traseiras da
carrinha prisional, desenvolve no rosto nova expressão facial, ainda apático e
de olhar vazio, mas já com um tremido sorriso a desenhar-se-lhe nos lábios: tocando
com a língua nos dentes, sente o formato de oito chumbinhos encrustados nas
covas das cáries; contorce-se com uma ligeira dor na ampola retal provocada
pelas duas botijas de cê-ó-dois que enfiou no ânus; e recorda-se alegremente da
pistola pressão d’ar, tamanho infantil, que traz acolchoada nas pregas do
escroto.
Pedro deCampos (27.1.2017) in "LiteraDura do ProleTariado"
sexta-feira, 16 de junho de 2017
A MOSCA (Uma História Hospitalar)
- LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)
"Todos naquele serviço sabiam, desde o seu penoso processo de integração, o significado daqueles audíveis varejares: quando pousa a mosca no doente, é certa a morte do paciente; e se a mosca é varejeira, tens morte reta e ligeira."
"Cada mosca faz sua sombra."
( Provérbio Português )
Eram mais ou menos quatro e meia, a hora forte das visitas, quando, em plena enfermaria, a mosca zumbiu. Os corredores, os cuidados intensivos, as macas, o armazém, a já falada enfermaria, os quartos, o refeitório, a farmácia, a unidade médica, o balcão, os infetados, a esterilização e todos os outros espaços hospitalares que não há necessidade de aqui referir estavam à cunha.
«Vi. Não é só mosca. É varejeira.» Acrescentou o auxiliar dos vários pírcingues e dilatadores, bastante interessado. «E é das verdes!»
Todos naquele serviço sabiam, desde o seu penoso processo de integração, o significado daqueles audíveis varejares: quando pousa a mosca no doente, é certa a morte do paciente; e se a mosca é varejeira, tens morte reta e ligeira.
De avental posto e luvas calçadas, com pés de celofane, touca e máscara a condizer, ficaram ambos à espreita e a ver em que cama pousava o inseto.
«Vai ser no dezoito preto.» Apostou o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores. «Os gajos de África atraem-nas e o velho já anda todo amorfinado.»
«Percebes lá disto! Eu jogo no vermelho, o doze, sabes qual é, não sabes? Aquele que entrou todo desorientado a gritar contra os que estão a dar cabo do sistema seminacional de saúde e que levou logo com a dose mágica de amonioxilosinomida do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. Ficou logo todo entubadinho, a ventilar, o gajo. E ainda é novo!»
A enfermeira muito gorda não se tinha apercebido que o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço acabara de sair da sala dos médicos e, mesmo bocejando e ainda esfregando os seus olhitos de lémure, ouvira toda a conversa. Dá meia volta sobre os calcanhares e, de forma autoritária para a enfermeira muito gorda e para o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores, remata subtilmente: «Profissionais experientes como são, com idade para terem juizinho e estão aqui neste palácio da saúde com tal tipo de conversas? Que gentalha! Com parva superstição popular sem fundamento científico nem comprovação estudada! Isso é um mito!»
«Deixe-se de discursos, ó doutor. Venha ver. Rápido! Aposte já! A vareja já entrou na unidade!» Sibilou excitada a enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha, já de olhos fixos na brachycera voadora, e que se havia achegado ali mal a conversa começara. «Digo eu que ela vai assentar é na velha. Aposto que é mesmo naquela escara mais amarelada.»
Farto da crendice popular, o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço gesticulou nobremente e voltou as costas aos rápidos ésses que a mosca descrevia naquele etéreo ambiente hospitalar, onde rasgava o éter com asas mestras. Erro crasso. A varejeira guina à última da hora junto à algália do dezoito e sem apelo nem agravo aterra na farta cabeleira do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. O académico ainda se sacudia nervosamente e já os outros três, os menos académicos, fundiam as vozes preocupadas num prolongadíssimo: «Oooooooh, doutor!»
Sem tempo para mais comentários, a unidade rebenta num aparato de “Pi-pi-pis”, “Ué-ué-ués”, “Ti-nó-nis” e outros sonidos típicos da emergência, em face da paragem encefalocardianorrespiratória do doze da amonioxilosinomida. O camarada, mesmo sem o pouso da varejeira, estava a bater a bota.
«O carrinho! O carrinho! Tragam o carrinho!» Gritou muito profissionalmente o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. Também muito profissionalmente, estacou de seguida, olhou enviesadamente para o processo do paciente e tornou a bradar profissionalmente: «Ai, que este é para investir! Carrinho com desfibrilhador, por favor!»
Estando o carrinho da unidade médica na manutenção, surge, em passo de corrida de velocidade, e vinda dos findos do serviço e dos fundos do feicebuque no aifone, a enfermeira estagiária do beicinho caído – empurrava desaustinadamente o carrinho de emergência suplente: «Aqui tá ele! Aqui tá ele! E tem desfrilhibador!» – que a miúda era mexida e esforçada mas suavemente disléxica.
Todos nas suas estudadas posições desarrumam o carrinho às pressas: o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores a posicionar e a desabotoar o doente; a enfermeira muito gorda a esventrar seringas ao plástico e a injetar dose reforçada de potassioxilosinomida; a enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha a ligar à corrente o desfibrilhador e a elevar a voltagem para números dignos de quadro de alta-tensão; o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço a besuntar as pás do desfibrilhador com um unto qualquer facilitador da passagem da corrente elétrica e a esfregar rotativamente as ditas uma na outra; e a enfermeira estagiária do beicinho caído a tirar apontamentos.
Vai daí que então o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço grita em inglês americano: «Clear!»
E os restantes, entreolhando-se nos seus oito sobrolhos franzidos, perguntam-se que raio de ideia quer o homem transmitir com aquele estadunidense berro. Estatuam-se no encerado piso hospitalar, viram-se para o da bata e dizem em coro: «Quê?»
«Clear, pá! Clear!» Repete enfurecido o médico com aquela pausa destruidora da sua ospícia performance. «Toda a gente sabe que se não se gritar “Clear!”, o desfibrilhador não surte aquele encadeado de efeitos dos filmes: o ligar à corrente, “Zuuuut”; o encostar na peitaça, ”Poop”; e ondulado horizontal do doente eletrificado, “Papom”!» Disse. «Sejam rigorosos! Atuem como se este comuna fosse da vossa família, porra!»
A enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha achou aparvalhada a atitude cinematográfica do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço e ameaçou que iria descrever com frases e ilustrações coloridas toda aquela idiotice caso o homem não lhe passasse para as mãos as pás desfibrilhadoras e a deixasse continuar o salvamento do doze. Os outros acenaram afirmativamente manifestando união decisória no trabalho, sentimentos de pertença à classe e orgulho na ordem. Com o médico a teimar que queria todos “Clear!” dali para fora e com a enfermeira-chefe a jogar-lhe, primeiro uns olhares endemoninhados, e, logo depois, umas unhas felinas às pás. Vai que puxa um para aqui e repuxa o outro para acolá e arrebanha um para acoli e apanha outro para lá, até que as bases de metal besuntado das pás do desfibrilhador desandam uma para cada um dos mamilos do clínico e descarregam-lhe pelo corpanzil abaixo aquela corrente elétrica primordial, gémea pouco mais enfezada que aquela sentida aquando do nascer do tempo e do espaço.
A sola do sapato italiano, incapaz de conter a velocidade daquela luz, descoseu-lhe a vida por ali abaixo num instante mais rápido que um penso, e ao tombar em cima do doze, «Ó milagre dos milagres!», devolveu à vida o marxista-leninista. Com o resto dos membros da equipa – os que ainda se encontravam vivos – a socorrer e a felicitar o camarada, junto ao chão, quase encostada ao estetoscópio, ainda se ouvia rugir incontida a enfermeira-chefe do casaquinho azul de malha: «Pasca aí, ó javardo! É assim que se salvam as pessoas, burgesso!»
Enquanto a mosca, a verdejante varejeira, adejava sorrateiramente pela janela mais próxima em direção a uma outra qualquer instituição de saúde – pública ou privada.
«Clear, pá! Clear!» Repete enfurecido o médico com aquela pausa destruidora da sua ospícia performance. «Toda a gente sabe que se não se gritar “Clear!”, o desfibrilhador não surte aquele encadeado de efeitos dos filmes: o ligar à corrente, “Zuuuut”; o encostar na peitaça, ”Poop”; e ondulado horizontal do doente eletrificado, “Papom”!» Disse. «Sejam rigorosos! Atuem como se este comuna fosse da vossa família, porra!»
A enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha achou aparvalhada a atitude cinematográfica do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço e ameaçou que iria descrever com frases e ilustrações coloridas toda aquela idiotice caso o homem não lhe passasse para as mãos as pás desfibrilhadoras e a deixasse continuar o salvamento do doze. Os outros acenaram afirmativamente manifestando união decisória no trabalho, sentimentos de pertença à classe e orgulho na ordem. Com o médico a teimar que queria todos “Clear!” dali para fora e com a enfermeira-chefe a jogar-lhe, primeiro uns olhares endemoninhados, e, logo depois, umas unhas felinas às pás. Vai que puxa um para aqui e repuxa o outro para acolá e arrebanha um para acoli e apanha outro para lá, até que as bases de metal besuntado das pás do desfibrilhador desandam uma para cada um dos mamilos do clínico e descarregam-lhe pelo corpanzil abaixo aquela corrente elétrica primordial, gémea pouco mais enfezada que aquela sentida aquando do nascer do tempo e do espaço.
A sola do sapato italiano, incapaz de conter a velocidade daquela luz, descoseu-lhe a vida por ali abaixo num instante mais rápido que um penso, e ao tombar em cima do doze, «Ó milagre dos milagres!», devolveu à vida o marxista-leninista. Com o resto dos membros da equipa – os que ainda se encontravam vivos – a socorrer e a felicitar o camarada, junto ao chão, quase encostada ao estetoscópio, ainda se ouvia rugir incontida a enfermeira-chefe do casaquinho azul de malha: «Pasca aí, ó javardo! É assim que se salvam as pessoas, burgesso!»
Enquanto a mosca, a verdejante varejeira, adejava sorrateiramente pela janela mais próxima em direção a uma outra qualquer instituição de saúde – pública ou privada.
Pedro deCampos (8.12.2014) in "LiteraDura do ProleTariado"
quinta-feira, 15 de junho de 2017
AVENTURAS DE BASÍLIO FERNANDES ENXERTADO, por Camilo Castelo Branco
Pelo Humor de Deus!
"Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um i; mas se lhe tirassem a pinta ao i, chamava-lhe o. O mestre seguia o sistema de pancadaria, sistema o mais racional de todos com cabeças daquele feitio."
I.
Nasce o Herói. A Cabeça e as Espertezas do Mesmo
Basílio Fernandes é um sujeito de trinta e sete anos, com senso comum, engraçado a contar histórias da sua vida, activo negociante de vinhos no Porto, amigo do seu amigo, e bastante dinheiroso - o que é melhor que tudo já dito e por dizer.
Seu pai chamou-se José Fernandes, por alcunha o Enxertado. Pegou-lhe a alcunha, porque, sendo ele natural de uma aldeia de Trás-os-Montes, quando já era caixeiro, muitas vezes dizia aos seus companheiros de passeata, aos domingos: «O Porto é boa terra; mas lá como o Enxertado, ainda não pus os olhos noutra!». A caixeirada, menos sensível à saudade das suas aldeias, ria do moço, e, por mofa, lhe chamava o Enxertado, alcunha que ele ajuntou aos seu nome com honras de apelido. (...)
Basílio foi o primogénito e único. Nascera muito gordo e extraordinàriamente volumoso. Tinha a cabeça igual ao restante do corpo, e uns pés dignos pedestais do capitel da irregular coluna. Em quanto ao tamanho descomunal da cabeça, foi isto motivo para muitas alegrias em casa; no parecer daquela mãe ditosa, a grandeza da cabeça era sinal de juízo, e o tamanho das orelhas correlativas sinal de bom coração. O pai, como não tinha ideias suas acerca de orelhas, abundava nas de sua mulher, posto que de via certa soubesse por um mau vizinho da porta dissera que o seu Basílio era aleijado, e sairia com orelhas de burro, se se demorasse mais três meses no ventre materno.
A casa do merceeiro ia um frade carmelitano de óptimos costumes, ainda parente transversal da senhora Bonifácia. Era opinião de frei Silvestre do Monte do Carmo, que a volumosa cabeça do menino significava talento. Este prognóstico abalava medìocremente os ânimos dos pais, que não sabiam o que era, nem o para que servia neste mundo o talento. (...)
José Fernandes, como o filho tivesse oito anos bem espigados, comprou-lhe um A B C, e foi levá-lo à escola. Era a cabeça de Basílio, no dizer do mestre, muito mais dura, e tapada, e maior que a bola de pedra da torre dos Clérigos. Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um i ; mas se tirassem a pinta ao i , chamava-lhe o. O mestre seguia o sistema de pancadaria, o mais racional de todos com cabeças daquele feitio. Basílio entrava em casa a chorar, a mãe saía de mantilha a descompor o mestre, o mestre, exauridas as razões, descompunha a senhora Bonifácia, e assim andaram, ora melhor ora pior, até que Basílio aprendeu o abecedário, às direitas, às avessas e salteado. (...)

Que a cabeça não cresceu desde os dez até aos dezanove, isso vê-se e mostra-se, apesar da ciência, na série de chapéus correspondentes aos decorridos nove anos, chapéus, que Basílio conserva, datados no forro, por mão de seu tio frei Silvestre, que, nos últimos anos de sua vida, não estudou senão a cabeça do sobrinho, e a estrada da salvação de três confessadas suas, cujo herdeiro ele foi.
Este fenomenal pousio da cabeça exterior parece que, no interno, foi causa de fertilização igualmente pasmosa! Basílio aprendeu a ler, desmentindo o mestre, que apostava pela irremediável negação do idiota. Em escrita, particularmente no bastardinho, deu invejas aos mais louvados condiscípulos. Em contas, desde as quatro operações até quebrados, foi um pasmar de rapidez e inteligência! Era um reviramento completo!
Agora, diremos de fugida algumas outras espertezas de Basílio Fernandes Enxertado nesta sua puerícia e começos de adolescência. (...)
in, Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (1863) Parceria A. M. Pereira, LDA, 6.ª ed., 1966, Lisboa, Colecção Obras de Camilo Castelo Branco (vol. LXVII) pp. 5-9
segunda-feira, 5 de junho de 2017
COUVES, por Miguel Esteves Cardoso
Pelo Humor de Deus!
"A mania do «Campo» leva gente civilizada a pegar na enxada, a comprar casas remotas, a acender candeeiros de petróleo e a fazer todas essas outras coisas das quais os antepassados, ao virem para a cidade, conseguiram legitimamente fugir. Outra coisa que fazem, evidentemente, é plantar couves galegas e portuguesas ao desbarato."
Se fosse cineasta e quisesse fazer um filme de terror, não hesitaria em escolher como principal personagem, a couve galega. Entre as espécies botânicas rádio-mutantes, não há nenhuma tão grotesca, tão tenaz e tão assustadora.
A invasão das couves galaico-portuguesas, alastra-se com cada ano. Durante o tempo que demorou a ler o primeiro parágrafo, mais cinquenta e duas couves nasceram. Mais cinquenta e duas (agora cinquenta e seis) iniciaram o seu lento e intratável crescimento. Tornar-se-ão em autênticas árvores, com talos grossos do tamanho de troncos, brotando folhas enormes e impermeáveis, capazes de chibatar no flanco de um pobre burro e passíveis até de servir de revestimento eficaz a uma moradia.
Qualquer estação de serviço com dois metros quadrados de terra lhes serve. À mínima provocação, na mais pequena nesga de terreno, os portugueses plantam couves galegas. Não faltará muito tempo para vermos estes monstros a irromper dos buracos das calçadas, a abrolhar nos vasos das salas de espera dos consultórios e a rebentar, aberrantes de pujança e de seiva, nos átrios dos nossos melhores cinemas. Qualquer cidadão tem o direito, e até a obrigação, de estar bastante nervoso.
A proporção de couves galegas que serve para alguma coisa - para sopas regionais e pratos típicos - é extremamente reduzida. Por conseguinte, as couves vão singrando e reproduzindo-se sem impedimento humano. Há hoje talos que causariam problemas graves à mais poderosa serra eléctrica.
Embora finjam estar «doentes» (daí a aparência
![]() |
Brassica Oleracea Acephala (orgulhoso espécimen com 3,50m, em Vila de Cano, Sousel) |
Sociologicamente falando, por assim falar, sociologicamente, há uma razão que poderá ajudar a explicar este Inferno Verde que ameaça cada vez mais as cidades e arrabaldes do nosso país. A razão diz respeito ao fenómeno dos Novos Camponeses. Trata-se de uma estranha nostalgia atávica que afecta os citadinos de hoje, levando-os a imitar o comportamento dos antepassados camponeses. A mania do «Campo» leva gente civilizada a pegar na enxada, a comprar casas remotas, a acender candeeiros de petróleo e a fazer todas essas outras coisas das quais os antepassados, ao virem para a cidade, conseguiram legitimamente fugir. Outra coisa que fazem, evidentemente, é plantar couves galegas e portuguesas ao desbarato.
Antigamente «a Terra» era um lugarejo longínquo e atrasado, repleto de lobos e lagares, onde as criadas iam passar as férias. Hoje os portugueses das cidades, que até há pouco tempo davam graças a Deus de não ter uma «terra», sentem a necessidade de inventar uma «Terra». Só porque os bisavós isto e a vista para a Serra aquilo, reconstituem os hábitos das criadas para poderem «ir à Terra». No fundo, o que eles fazem é ir para a Província, apesar desta palavra justa ter sido recentemente proscrita. A Província hoje chama-se «Regiões», e não há nada mais na berra do que as regiões.
Os novos camponeses usam invariavelmente «Kispos», que são uma memória plástica das samarras e daqueles casacos feitos de palha que têm um nome que é suposto sabermos, sabe-se lá porquê. Falam do «Campo» como se o tivessem descoberto. No tom que se admitiria a Vasco da Gama à chegada a Calecut, falam das «tasquinhas giríssimas» que descobriram, da velhota a quem compram as alfaces, da vista para as serras e para os rios e praticamente da vista para todo o lado. Cada um tem o seu local «secreto» que «descobriu», o que estaria certo se assim permanecesse. Secreto, em vez de indiscretamente propagandeado na própria cidade de onde dizem ser tão importante «fugir».
Os Novos Camponeses concordam com a couve galega. Podem considerar-se, para todos os efeitos, colaboracionistas. As matas densas de couves, florestas mais meretrizes que virgens, são a vingança do Campo sobre a Cidade. O roçar horrendo das folhas umas nas outras, num linguajar vegetal provocado pelo vento e pelos escapes dos automóveis, sussurra aos transeuntes: «Julgas que nos escapaste, mas não escapaste, toma lá pinhões.» São pinhões que somos forçados a tomar por termos abandonado a existência rude, desconfortável e entediante que é um dos principais encantos do Campo.
É por isso que mesmo na Lapa há couves galegas, tapando a vista até aos segundos andares, em quantidade suficiente para encher o Tejo de caldo verde. Para não falar nas galinhas, nos coelhos e noutros animais selvagens a que algum humorista popular, num momento de péssimo gosto e desrespeito religioso, chamou «criação». Os galos, sobretudo, é preciso denunciar.. Começam a gritar ás quatro da manhã, naquela estridência despropositada e satânica que aquele mesmo humorista chamou «cantar». Numa cidade europeia, os galos só se apresentam «au vin». Um galo vivo é uma aberração. Os únicos bichos que se deveriam consentir vivos numa metrópole são aqueles capazes de obedecer a ordens humanas. O excedente deveria ser forçosamente repatriado para a Província, naquelas carruagens de campo de concentração que se vêem no cinema.
Nesta selva de couves, de criação, de «Kispos» e botas alentejanas, cada vez é mais difícil descobrir a cidade. A couve galega é o símbolo. É preciso inventar um veneno anticouves. Até esse dia entorne-se-lhe uma bica junto das raízes. Não lhes faz nada bem.
in, A Causa das Coisas (1986) Assírio & Alvim, 4.ª ed., 1987, Lisboa, pp. 73-5
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