quarta-feira, 28 de junho de 2017

A PRESSÃO d'AR (uma história em armazém)

  • LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)



 "Os telejornais das oito (...) diziam que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou discriminadamente vários tiros de pistola pressão d'ar sobre colegas e patrão.» "



"Quem as arma que as desarme." 
( Provérbio Português )

Naquele início do ano de noventa e cinco, eram constantes os riscos que se corriam no gigantesco armazém de venda e distribuição de artigos para pesca e caça, onde o jovem Vital da Silva, com ainda dezassete aninhos, se estreava no mundo do trabalho. O rapaz arrumava, limpava e carregava arduamente todo e qualquer utensílio que se pudesse encaixotar, vender ou comprar, enquanto aspirava vagamente à profissão de fiel de armazém. Parecia ao moço que, com relativa facilidade, poderia ser fiel ao armazém da Pesca&Caça,S.A.. Dos perigos que espreitavam para lá de cada estante, ainda nada suspeitava.

Naqueles dias felizes, a loja tinha sempre clientes e o serviço não conhecia pausas. E isto muito convinha ao Vital pela sua extrema necessidade em se manter ocupado; caso contrário, insuflava-se-lhe a veia criativa. Fácil também é de entender, pela leitura dos protocolos e regras de armazenamento, que tal capacidade inventiva não encaixava com eficácia no espaço físico daquele entreposto comercial.

E, mais palete menos palete, foi exatamente o que acabou por suceder.

Passados alguns meses de árdua colaboração entre patrão, chefes, escriturários, fiéis de armazém, carregadores, camionistas, caixeiros, vendedores, contabilistas e ajudantes, começaram a ser evidentes, nos estreitos e pouco ventilados corredores da Pesca&Caça,S.A., os primeiros sinais de alguma desaceleração económica gerada pelos anos finais (era o que então se julgava) do cavaquismo. A pica dos capitais europeus, muito mais fraca e com cada vez mais intermediários, já não dava o coice de antigamente, e muitos dos velhos pescadores-caçadores-coletores que por ali negociavam antes, bebericavam agora os dias no gim tónico das algarvias reuniões imobiliárias ou delambiam-se no mamilo da liberdade chupando um contrato para mais outro campo de golfe de agrícola interesse nacional.

Conjunturalmente, o frenesi do armazém viu-se reduzido a tiros de pólvora-seca, verdadeira amostra do engodo de outrora. Ao Vital, já a agonia lhe picava o anzol.

Com quase nada para fazer, deu ao gaiatão em colecionar material de pesca. Colecionar é a palavra correta porque o Vital nunca foi rapaz de faina: muito tosco de motricidade, trabalhar com o fio de nylon era mais um emaranhado passatempo que um real empate de anzóis; depois, a minhoca metia-lhe nojo e do casulo chegava mesmo a sentir medo; e ainda havia a, propriamente dita, problemática do peixe – não gostava de lhe sentir o toque, e do qual, desde miúdo, não apreciava cheiros nem sabores. E assim, só pelo puro prazer de inventariar utensílios e só pela pura necessidade de descarregar a adrenalina contida, se deleitou neste verdadeiro desafio: uma febre desmedida de armazenar em casa um exemplar de tudo o que existia em stock e que à exclusiva pratica pesqueira se destinava.

Não obstante os mil perigos que corria, mais não fazia das oito às dezanove (e até mesmo durante a hora de paragem para o almoço), que maquinar ou levar à prática os mais rocambolescos esquemas para tomar de assalto os três andares de armazém que compunham a Pesca&Caça,S.A..

O sorteio diário, à saída, que impunha uma rápida revista corporal em apalpadelas inocentes, obrigou às mais fantásticas estratégias de gatunagem: delapidou alguidares inteiros com anzóis para todo o tipo de pescado, colados com fita adesiva da cor da pele na parte de trás das orelhas; agadanhou quilómetros de fio das mais variadas espessuras, emaranhando-os nos caracóis dos seus revoltos cabelos; rapinou coleções inteiras de amostras coloridas, encaixando-as dentro do cano das galochas em dias de serviço às casas-de-banho; subtraiu um carreto para mar-alto e de alto calibre, despejando-o no lixo em dia de faxina e passando a apanhá-lo de madrugada mesmo antes da noturna recolha dos monos; surripiou os mais diversos tipos de guizos para ponteiras de cana, acolchoando-os nas pregas do escroto e de modo a não tinirem com a passada; e ainda depenou uma dezena de quilos de chumbadas de gramagem variada, enfileirando-as pelo ânus acima.

Corria-lhe bem, a pesca. Navegava calmo nos estrados do armazém.


Enfunara a vela do bom humor e bolinava-lhe já na ideia uma mirabolante técnica para bifar uma cana de quatro metros e meio (o que não se apresentava como tarefa muito difícil pois a ferramenta desdobrava-se facilmente em duas partes de dois e vinte cinco), quando, inesperadamente, se desmotivou. Caído de novo na melancólica desgraceira de ajudante fiel sem tarefa cativante, cabisbaixo se quedou semanas a fio, sem apetite pela vida, entornando-se do trabalho para casa e da casa para o trabalho, já sem o aquático jorro de outrora. E doíam-lhe os dentes, também, até ao nervo alveolar inferior, enjoando noites a fio nas covas das suas oito cáries a postularem por calafetagem estomatológica.

Numa madrugada sem memória, em casa, enquanto preparava algo ruim com gelo para se afundar na cama para sempre, escutou ao longe o arrulhar das velhas rolas que o seu vizinho do rés-do-chão tanto estimava. Logo ali se estacou Vital, de olhos muito arregalados junto ao frigorífico, e eis que milagrosamente lhe ocorre dedicar-se à caça. «Ai as armas, as armas!» Quanto tempo havia perdido na mariquice da caninha, do anzolzinho, da malinha, do banquinho e do lanchinho, ignorando o verdadeiro desígnio da sua curta vida? «Arma ao ombro!», gritou, e ali se decidiu a, a partir de então, matar e esfolar o seu próprio lanche.

Entretanto, no armazém, alertados que estavam os patrões pela equipa da contabilidade sobre os estranhos stocks piscatórios que se evaporavam sem gerar resultados, apertaram as malhas da vigilância e da revista, e ordenaram ao próprio Vital que se mudasse de vigilâncias e bagagens para a secção do armamento. Porque temiam também aí as investidas da gatunagem ou porque dele desconfiavam e queriam-no longe das pescas, não se chegou nunca a saber. Soube-se só que foi erro crasso para todos neste enredo, mas que, naquele precioso momento, deixou o fiel moço à beira de uma euforia espampanante, camuflada no último instante pelo sangue frio que lhe corria nas veias.

À tarefa que lhe deram de fazer exaustivo levantamento das armas e munições presentes, de olear os metais e as madeiras das ditas, e de verificar gatilhos e tambores a todas, engatilhou-se-lhe na ideia testar os materiais e componentes. Ser mais seletivo nas escolhas era agora o objetivo, não tanto pelas novas dificuldades técnicas requeridas ao saque, mas muito mais pelo próprio amadurecimento da personalidade. Estrategicamente se decidiu a começar pelas armas mais simples, evoluindo a seu tempo em direção às mais complexas. A bisnaga, a fisga, o canivete, a navalha, a catana, a zarabatana, o arco, a besta ou a pistola pressão d’ar deliciaram-no, disparando jatos, cunhas, pedras, golpes, dardos, setas, flechas ou chumbos em todas as direções. A pistola pressão d’ar requeria um traquejo que depressa conquistou: recarregar os trinta chumbos no depósito fazia-o em pouco mais de quatro segundos e para injetar no cabo a botija de cê-ó-dois que, do tamanho de um polegar, manteria na arma a pressão alta, demorava apenas três míseros seguros. E tornou-se a sua predileta.

Ei-lo, então, Vital da Silva, menor de idade, doze anos de incompleta escolaridade, aspirante a fiel de armazém, a ira estampada no rosto imberbe camuflado em verdes e negras riscas, invariavelmente refundido e disfarçado, conquistando terreno aos penhascos de caixotes num crescendo de voracidade pelos montes de gavetas acima, explodindo autoconfiança entre os vales de prateleiras e ao pontapé a tudo o que lhe aparecia pela frente. À cintura, uma bem engendrada tira de grosso couro cravada com dezasseis caixas de quinhentos chumbos cada; no peito e às costas, cruzadas à frente e atrás, duas largas cintas cartucheiras onde se perfilavam encaixadas oitenta reluzentes botijas do gás pressionante; à tiracolo, um par de binóculos; uma em cada mão, as duas pistolas em riste.

Se com as primeiras oito silenciosas armas alarido algum havia feito, com a pistola, mesmo sem o fogoso ruído da pólvora, muito começou a dar nas vistas. Para melhorar a já de si aguçada pontaria, atirava rápida e repetidamente em alvos dispostos por todo o armazém e rebentava em performances guerreiras rastejando, trepando e furando tal comando no médio oriente. Os silvados dos chumbos e os baques dos projéteis no metal, no cartão, no plástico e na madeira, atraíram a presença dos mais diversos figurantes da Pesca&Caça,S.A.: primeiro uma dúzia de colegas de hierarquia que, estúpidos com o que presenciavam, apenas se boquiabriram a segura distância; depois vieram as chefias que, por funções a que os postos obrigavam, gritaram que nem uns animais para que parasse com aquela fantochada; quase em simultâneo, o vendedor mais premiado, o patrão e o seu secretário achegaram-se também àquele piso onde raramente empoeiravam os sapatos, para questionarem a algazarra.

«Ó Vital!? Que é te deu, rapaz?» Arriscou perguntar num passo à frente o seu subchefe direto, isto antes de ser atingido por dois chumbos, um de cada pistola, um em cada olho, demonstrando com a cegueira imediata as virtudes atiradeiras do moço. Ficou-se a perceber, de jorro, a enorme gravidade da situação ali armazenada, quando começaram a gritar, uns, a fugir, os outros, e a gritarem e a fugirem ao mesmo tempo, diversos deles. E desapareceram todas as dúvidas no momento em que um dos chefes se decidiu a acudir o seu invisual subordinado quase-morto e foi prontamente furado em cheio na têmpora, ficando a esvair-se num fino repuxozinho de sangue.

E o Vital, que ora gritava que nem um animal a ser sangrado, ora gargalhava louco com os dentes arreganhados, depressa se esgueirou silenciosamente pelos túneis acartonados e pelas pontes de cantoneira que conhecia como as palmas das suas mãos, indo à caça dos restantes colaboradores e empregadores que em mais nada pensavam que se porem a salvo daquela inexplicável selvajaria típica de escola secundária norte-americana.

Na correria, atropelaram-se dois quarentões, um caixeiro de viagens e outro camionista de longo curso, que, caídos de bojo no estrado, foram chumbados de cima para baixo, em plenas cruzes, com quatro projéteis, um para cada rim. Sobrevivendo aos corpos estranhos no organismo, contudo ali se quedaram imóveis, gemendo quase tanto como quando se padece de cólica renal. Quem ouviu os gemidos e não resistiu à voluntariosa prestação de ajudar os próximos, foi um auxiliar de limpezas. Quando colocou a cabeça para lá da segurança do monte de sacos de chumbo onde se havia refugiado, levou com um chumbinho em cheio na artéria femoral, agora de baixo para cima que o Vital já havia mudado inesperadamente de posição. Em minutos se findou, perdendo os vermelhos todos do corpo pelo furinho na virilha e alagando todo o mármore em volta com o precioso sangue.

Com os atropelamentos e os gritos e as correrias e os empurrões daquelas gentes aflitas, e mais as quedas e os estrondos e as explosões dos objetos que derrubavam e pisavam e incendiavam por onde passavam, o número de feridos e mortos ia para além daqueles que o Vital provocava diretamente com as suas supostas fracas armas. Mesmo assim, poderoso nas intenções e cada vez mais enraivecido, começa o caçador a dirigir-se à zona dos escritórios de onde a maior parte dos administrativos já se havia escapulido, não sem antes terem alertado as autoridades e as outras instituições que costumam aparecer nestas imagináveis situações. Lá só restavam o patrão e o seu secretário da administração e de estimação, muito volteando atarantadamente, ambos, com papéis, portáteis, títulos, certificados e outras traquinices típicas destas individualidades. Abre cofre e fecha conta, tira saldo e limpa saco, rasga folha e dita ordens, offshora-se uma lágrima adamantina com elevado índice de refração, e nem deram conta do clandestino aproximar do Vital caçante.

Lá fora, as barulhentas ambulâncias e os amarelos inemes e respetivos bombeiros, enfermeiros médicos e doutores recolhiam e entrapavam aqueles destroços de gente enquanto ensacavam os que já nem gente eram. Os polícias normais mantinham o perímetro imaculado, afastando a empurrão a curiosidade dos abutres populares e tratando de acalmar a preocupação dos familiares das possíveis vítimas. As rádios, as televisões e os jornais, as câmaras, os microfones e os telemóveis, os repórteres, os fotógrafos, os pivôs e os média, escutavam quase uns poucos e falavam mais que todos. Os polícias especiais das brigadas de intervenção estavam de preto, hirtos e calados (os subordinados), e de preto, hirtos e concentrados nas plantas do armazém, os subordinantes – todos se preparavam para a ação.

Vital está completamente alheio ao aparato exterior. Os olhos raiados de sangue almejam à distância as costas das suas próximas vítimas. Lenta e silenciosamente, dissimulado pela cabulagem elétrica do primeiro andar dos escritórios, trepa e arrasta-se pelas cilíndricas condutas de ar condicionado até à divisão pretendida. Pendurado pela tenaz força das pernas ao tubo ventilador, de cabeça para baixo, encontra a linha de tiro perfeita para cilindrar mais dois. Injeta nas pistolas duas novas botijas de ar comprimido – máxima potência de tiro. Verte no carregador chumbos da melhor marca – mais probabilidade de perfuração. Com os seus olhos de lince, tem alinhadas as alças e as massas de mira de ambas as pistolas às carótidas das presas.

Com o frenético ensacar do numerário, patrão e secretário nada pressentem sobre a curta distância a que o fel se encontra deles. Nada desconfiam sobre a eminente perfuração das suas veias e a consequente limpeza eterna das suas almas. Mas saltam quando veem os primeiros agentes das brigadas de intervenção correr ao fundo do corredor. E quando se apercebem do suspenso vulto da besta, camuflada, invertida, rosto contorcido, olhos encarnados, armas eretas – a morte pendente a pouco mais de seis metros de si –, correm histericamente também na mesma direção.

Vital dispara de imediato as pistolas pressão d’ar numa sincronização quase exata. Mesmo com as vítimas em movimento, atinge patrão e empregado nas pretendidas zonas do pescoço. Depois, derruba-os com os binóculos, aplicando-lhes uma repetição de fortes golpes rotativos nos crânios. No chão, inanimados, os homens não sentem o lento vazar do corpo, o sangue a correr vagaroso sobre os papéis, e sem compreenderem que estão a ser assassinados com duas impensáveis chumbadas nas carótidas externas.

Com a bruta entrada dos polícias pela sala, Vital mais não consegue fazer que ganhar algum tempo enfiando verticalmente os canos das armas dentro da própria boca. Sem falar, sem expressar sentimentos, sem transparecer emoções, sem responder aos apelos e ordens policiais, observa a seus pés as vítimas a falecerem e prepara os seus últimos disparos.

«Quando era miúdo, às vezes dava-lhe para chatear a gente. Vinha por trás e amandava tipo pedras da calçada à cabeça da gente.» Confidenciava ao calção curto da jovem e loira jornalista, um vizinho do Vital com mais dez ou quinze anos que o rapaz. E ainda disse: «Mas a gente dávamos-lhe uns murros nas costas e uns pontapés tipo na cara e a coisa ficava por ali. Pior foi quando ele se agarrou ao ácido…» A jornalista, de microfone profissional, pergunta: «O Vital, tão novo, já era toxicodependente?» E o vizinho: «Não, não! Ele era é do tipo independente. O pai dele, que era o melhor pintor lá do bairro, também era muito bom a dar porrada na família. Chegava passado a casa, muita bêbado, e vai tipo de afiambrar na mulher, na miúda e no puto por porras sem jeito nenhum. Uma vez em que o Vital levou dele com uma lata de tinta das de dez litros pelas pernas, todo torcido, ainda agarrou numa de decapante e amandou-lhe com o ácido à tromba. O cota, quando saiu do hospital – e teve lá quase seis meses –, parecia o Nikki Lauda. O pessoal do bairro andou anos a falar na cena.» Cerrou os olhos devagar e encolheu os ombros, expressando corporalmente um simples «É a vida!»

Foram oito os disparos ouvidos pelos polícias que ficaram momentaneamente sem respirar e à espera da queda final do jovem fiel armazenista. Com as armas já caídas a seu lado, uma pistola à direita e outra à esquerda, tomba finalmente o Vital: primeiro, violentamente sobre os joelhos, e depois, muito devagar, o resto do corpo a descair para trás de encontro ao chão alcatifado. Os da ordem afastaram logo as pressão d’ar, viraram o miúdo até à posição lateral de segurança e sentiram-lhe o pulso. Estranhamente o seu coração batia calmo, forte e compassado como o de um velho maratonista. Não havia sinais de ferimentos externos ou internos. Estava apenas apático, de olhar vazio e com um ligeiro esboço de sorriso nos lábios.

Sem qualquer tipo de resistência, Vital da Silva foi despojado da sua camuflagem e munições, algemado nas mãos e nos pés, colocado num reforçado colete-de-forças e transportado em carrinha gradeada e de vidros foscos à prova de bala, em altíssima segurança, para o único estabelecimento prisional psiquiátrico do país. A saída do armazém fez-se de forma muito ordeira uma vez que, comunicando os de dentro com os de fora, conseguiram espantar os populares que pretendiam cheirar o massacre de perto. Algumas máquinas e câmaras indiscretas ainda conseguiram fotos de baixa qualidade e uns poucos curtos filmes daquele jovem rosto criminoso todo esborratado de verde e negro. Continuando sem expressão, apenas apático e de olhar vazio, com um ligeiro esboço de sorriso nos lábios, as fotos nada revelavam sobre o que se passava ou teria passado naquela mente assassina.

Menos de uma hora depois, os telejornais das oito abriam com essas mesmas imagens e diziam que «Massacre em armazém causa nove mortos e dezoito feridos graves. O homicida, um jovem de dezassete anos aspirante a fiel de armazém, disparou discriminadamente vários tiros de pistola pressão d’ar sobre colegas e patrão.» Momentaneamente, o país ficava em choque traumático e com pouco mais reação que um sussurrado «Meu Deus!» entre dentes.

Em simultâneo com o pasmo de um país inteiro que pouco habituado vivia a estas extremas violências internas, o jovem Vital da Silva, acorrentado nas traseiras da carrinha prisional, desenvolve no rosto nova expressão facial, ainda apático e de olhar vazio, mas já com um tremido sorriso a desenhar-se-lhe nos lábios: tocando com a língua nos dentes, sente o formato de oito chumbinhos encrustados nas covas das cáries; contorce-se com uma ligeira dor na ampola retal provocada pelas duas botijas de cê-ó-dois que enfiou no ânus; e recorda-se alegremente da pistola pressão d’ar, tamanho infantil, que traz acolchoada nas pregas do escroto. 
  

Pedro deCampos (27.1.2017) in "LiteraDura do ProleTariado"


NO TEMPO DAS CAPAS GORDAS > 5


















domingo, 25 de junho de 2017

HOJE NÃO TE OFEREÇO OS MARES


Olha
hoje não te ofereço os mares
porque as marés são sujas

Não te sirvo vinhos
porque a uva é cheia
de indelicadezas

Mas quando o figo cair maduro à terra
o cinema arte renovada
uma cor parir todas as outras
e os lençóis se retorcerem em suores
chegarei todos os dias da escola
anoitecendo pelo lar adentro
sempre com o Sol debaixo do braço

Nessa noite luz
não te oferecerei os mares
apenas e porque
as marés continuam sujas;
mas restaurar-te-ei
uma velha gasta linda estante
que comprei barata
para segurares
todas as músicas de que gostamos


Pedro deCampos (23.5.1999) in "PisaDuras & ArDores"



NO TEMPO DAS CAPAS GORDAS > 4


quinta-feira, 22 de junho de 2017

LIBERDADES

Como eu lhe tinha dado uns poemas meus a ler no nosso décimo ano, uma miúda magrinha e de cabelo preto escorrido (uma boa amiga de turma) ofereceu-me, no ano seguinte, sete versos escritos a lápis num papel amarrotado.

Que os tinha encontrado no chão. Poema sem data, autoria, título ou o que quer que fosse, para além daqueles sete curtos versos:

          PENSA
          QUE A REVOLUÇÃO
          PROVOCA

          O POVO
          É UM OVO
          QUE A LIBERDADE
          CHOCA


Memorizei-o até hoje.

Vinte e sete anos depois, dois ou três após ter queimado o caderno para onde me lembro de os ter copiado, continuo sem saber do poeta, nunca mais vi a minha amiga de cabelos pretos escorridos e desconheço o paradeiro do poema amarrotado.

Não sinto grande vontade em procurar qualquer deles, mas diverte-me imaginar que o poeta era a miúda magrinha, afinal.


Pedro deCampos (17.11.2016) in "ApontaMentes"


Tróia, Setúbal (20??) Bruno Ramos









LiteraDura de PAREDE < 4


terça-feira, 20 de junho de 2017

O i-PHONE NÃO TEM FITA DE TINTA, por Vasco deOliveiraVentura


Cronista Sem Abrigo

"Onde se abrigam as crónicas sem abrigo." 

A conversa animada parou imediatamente, os jovens de menos de 20 anos detiveram-se e ficaram mudos a ouvir o quarentão que ria e disparava, entre duas garfadas: “não, eu não tenho computador, nunca tive”. “Hum? Aham? Mas… mas… mas… Não ter computador é como não ter meias?! Você não anda na rua sem meias, pois não?!”. “Bom, não, sem meias não, mas sem computador sim!”.


Instintivamente, devem ter-lhe vindo à memória os tempos de adolescente, em que o seu “computador” era uma máquina de escrever, da escola ou emprestada pelo melhor amigo, e em que redigia trabalhos escolares, disparates, tudo o que lhe vinha à cabeça. Tempos em que os primeiros computadores ainda estavam a chegar ao mercado europeu, e em que “jogar computador” era uma aventura repleta de imprevistos e de sons misteriosos (“bin brin bzzt bzzt tuun”), enquanto o dito jogo carregava.

Pensava nos computadores 48K, na linguagem de programação Basic e nas letras de imprensa a bater na folha de papel, deixando por lá as marcas de tinta mais ou menos indelével, as letras, as palavras, as frases, os sentimentos, as ideias…

No meio desta reflexão, começa a ouvir precisamente esse termo – “máquina de escrever” – e pensou que estava no sítio errado. Mas não, ouvia bem. Os jovens estudantes com quem almoçava falavam em máquinas de escrever, em trabalhos escritos em máquinas de escrever e entregues na faculdade, no que faziam quando se enganavam numa palavra ou tinham que substituir a fita de tinta da máquina… “Hum?”, perguntou à rapariga que estava ao seu lado. “Vocês usam máquinas de escrever?! Ahm, já estou a perceber, é uma cena ‘retro’, é como os discos de vinil, é isso, não é?”. “Sim”, respondeu a rapariga, “é isso!”.

Suspirou, sorriu e pensou que o mundo actual é um lugar estranho, às vezes difícil de perceber. Mas, se ainda há por aí máquinas de escrever a teclar e discos de vinil a rodar no prato, então nem tudo está perdido…!

inhttp://cronistasemabrigo.com/index.php/2016/05/03/o-i-phone-nao-tem-fita-de-tinta/


CRONISTA SEM ABRIGO, Vasco deOliveiraVentura


Cronista Sem Abrigo

"Onde se abrigam as crónicas sem abrigo." 


Sempre que a LiteraTura for tema, destaque ou referência, não será dia para estas crónicas dormirem na rua.

NO TEMPO DAS CAPAS GORDAS > 3


domingo, 18 de junho de 2017

PROVISÓRIOS & DEFINITIVOS (& KENTUCKY USA)

Kentucky: aos doze anos, quando em 1984 jogávamos o Campeonato Europeu de Futebol em França com “Os Patrícios”, eu experimentava-os nas traseiras do pavilhão desportivo da Escola Preparatória D. António da Costa.


Provisórios: aos catorze anos, em 1986, enquanto “Os Infantes” faziam greve no Campeonato Mundial de Futebol no México, eu fumava-os nas traseiras do pavilhão desportivo da Escola Técnica Emídio Navarro. 


Definitivos: aos dezasseis anos, em 1988, chorávamos o Campeonato Europeu de Futebol na Alemanha Federal com “Os Ausentes” e eu esfumaçava-os no muro da frente do campo de jogos da Escola Secundária Anselmo de Andrade.

Sempre à minha frente, os outros, os mais populares do ciclo, gozavam-me muito porque eu fumava tabaco de velho.

Em 2002, enquanto “Os Tugas” iam às putas no Campeonato Mundial de Futebol no Japão e na Coreia do Sul, dois dos meus alunos de nove anos fumavam escondidos nas traseiras do campo de jogos da escola básica da Quinta da Courela. 

Em 2006, enquanto jogávamos o Campeonato Europeu de Futebol com “Os Conquistadores” numa Alemanha sem muros, via os dois extremos da minha equipa, a Juventude do Feijó, cada um com 30 anos, fumando uma cigarrada durante o intervalo de um jogo, escondidos nas traseiras do balneário do pelado Silva Nunes do Clube Desportivo Cova da Piedade. 

Em 2016, enquanto “Os Aurélios” venciam o Campeonato Europeu de Futebol em França, eu mantinha uns provisórios cigarros de enrolar no bolso direito da camisa e dois definitivos cancros às costas, um em cada pulmão.

E uma miragem… a planeada viagem ao Kentucky.

Pedro deCampos (27.11.2016) in "ApontaMentes"


sexta-feira, 16 de junho de 2017

A MOSCA (Uma História Hospitalar)

  • LiteraDura do ProleTariado (histórias do trabalho)                                                                


"Todos naquele serviço sabiam, desde o seu penoso processo de integração, o significado daqueles audíveis varejares: quando pousa a mosca no doente, é certa a morte do paciente; e se a mosca é varejeira, tens morte reta e ligeira."


"Cada mosca faz sua sombra." 
( Provérbio Português )

Eram mais ou menos quatro e meia, a hora forte das visitas, quando, em plena enfermaria, a mosca zumbiu. Os corredores, os cuidados intensivos, as macas, o armazém, a já falada enfermaria, os quartos, o refeitório, a farmácia, a unidade médica, o balcão, os infetados, a esterilização e todos os outros espaços hospitalares que não há necessidade de aqui referir estavam à cunha.

«Anda por aí mosca. Viste-a?» Disse a enfermeira muito gorda.

«Vi. Não é só mosca. É varejeira.» Acrescentou o auxiliar dos vários pírcingues e dilatadores, bastante interessado. «E é das verdes!»

Todos naquele serviço sabiam, desde o seu penoso processo de integração, o significado daqueles audíveis varejares: quando pousa a mosca no doente, é certa a morte do paciente; e se a mosca é varejeira, tens morte reta e ligeira.


De avental posto e luvas calçadas, com pés de celofane, touca e máscara a condizer, ficaram ambos à espreita e a ver em que cama pousava o inseto.

«Vai ser no dezoito preto.» Apostou o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores. «Os gajos de África atraem-nas e o velho já anda todo amorfinado.»


«Percebes lá disto! Eu jogo no vermelho, o doze, sabes qual é, não sabes? Aquele que entrou todo desorientado a gritar contra os que estão a dar cabo do sistema seminacional de saúde e que levou logo com a dose mágica de amonioxilosinomida do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. Ficou logo todo entubadinho, a ventilar, o gajo. E ainda é novo!»

A enfermeira muito gorda não se tinha apercebido que o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço acabara de sair da sala dos médicos e, mesmo bocejando e ainda esfregando os seus olhitos de lémure, ouvira toda a conversa. Dá meia volta sobre os calcanhares e, de forma autoritária para a enfermeira muito gorda e para o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores, remata subtilmente: «Profissionais experientes como são, com idade para terem juizinho e estão aqui neste palácio da saúde com tal tipo de conversas? Que gentalha! Com parva superstição popular sem fundamento científico nem comprovação estudada! Isso é um mito!»

«Deixe-se de discursos, ó doutor. Venha ver. Rápido! Aposte já! A vareja já entrou na unidade!» Sibilou excitada a enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha, já de olhos fixos na brachycera voadora, e que se havia achegado ali mal a conversa começara. «Digo eu que ela vai assentar é na velha. Aposto que é mesmo naquela escara mais amarelada.»

Farto da crendice popular, o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço gesticulou nobremente e voltou as costas aos rápidos ésses que a mosca descrevia naquele etéreo ambiente hospitalar, onde rasgava o éter com asas mestras. Erro crasso. A varejeira guina à última da hora junto à algália do dezoito e sem apelo nem agravo aterra na farta cabeleira do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. O académico ainda se sacudia nervosamente e já os outros três, os menos académicos, fundiam as vozes preocupadas num prolongadíssimo: «Oooooooh, doutor!»


Sem tempo para mais comentários, a unidade rebenta num aparato de “Pi-pi-pis”, “Ué-ué-ués”, “Ti-nó-nis” e outros sonidos típicos da emergência, em face da paragem encefalocardianorrespiratória do doze da amonioxilosinomida. O camarada, mesmo sem o pouso da varejeira, estava a bater a bota.

«O carrinho! O carrinho! Tragam o carrinho!» Gritou muito profissionalmente o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço. Também muito profissionalmente, estacou de seguida, olhou enviesadamente para o processo do paciente e tornou a bradar profissionalmente: «Ai, que este é para investir! Carrinho com desfibrilhador, por favor!»

Estando o carrinho da unidade médica na manutenção, surge, em passo de corrida de velocidade, e vinda dos findos do serviço e dos fundos do feicebuque no aifone, a enfermeira estagiária do beicinho caído – empurrava desaustinadamente o carrinho de emergência suplente: «Aqui tá ele! Aqui tá ele! E tem desfrilhibador!» – que a miúda era mexida e esforçada mas suavemente disléxica.

Todos nas suas estudadas posições desarrumam o carrinho às pressas: o auxiliar dos vários pirsingues e dilatadores a posicionar e a desabotoar o doente; a enfermeira muito gorda a esventrar seringas ao plástico e a injetar dose reforçada de potassioxilosinomida; a enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha a ligar à corrente o desfibrilhador e a elevar a voltagem para números dignos de quadro de alta-tensão; o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço a besuntar as pás do desfibrilhador com um unto qualquer facilitador da passagem da corrente elétrica e a esfregar rotativamente as ditas uma na outra; e a enfermeira estagiária do beicinho caído a tirar apontamentos.

Vai daí que então o senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço grita em inglês americano: «Clear!» 

E os restantes, entreolhando-se nos seus oito sobrolhos franzidos, perguntam-se que raio de ideia quer o homem transmitir com aquele estadunidense berro. Estatuam-se no encerado piso hospitalar, viram-se para o da bata e dizem em coro: «Quê?»

«Clear, pá! Clear!» Repete enfurecido o médico com aquela pausa destruidora da sua ospícia performance. «Toda a gente sabe que se não se gritar “Clear!”, o desfibrilhador não surte aquele encadeado de efeitos dos filmes: o ligar à corrente, “Zuuuut”; o encostar na peitaça, ”Poop”; e ondulado horizontal do doente eletrificado, “Papom”!» Disse. «Sejam rigorosos! Atuem como se este comuna fosse da vossa família, porra!»

A enfermeira-chefe com casaquinho azul de malha achou aparvalhada a atitude cinematográfica do senhor doutor que traz o estetoscópio ao pescoço e ameaçou que iria descrever com frases e ilustrações coloridas toda aquela idiotice caso o homem não lhe passasse para as mãos as pás desfibrilhadoras e a deixasse continuar o salvamento do doze. Os outros acenaram afirmativamente manifestando união decisória no trabalho, sentimentos de pertença à classe e orgulho na ordem. Com o médico a teimar que queria todos “Clear!” dali para fora e com a enfermeira-chefe a jogar-lhe, primeiro uns olhares endemoninhados, e, logo depois, umas unhas felinas às pás. Vai que puxa um para aqui e repuxa o outro para acolá e arrebanha um para acoli e apanha outro para lá, até que as bases de metal besuntado das pás do desfibrilhador desandam uma para cada um dos mamilos do clínico e descarregam-lhe pelo corpanzil abaixo aquela corrente elétrica primordial, gémea pouco mais enfezada que aquela sentida aquando do nascer do tempo e do espaço. 


A sola do sapato italiano, incapaz de conter a velocidade daquela luz, descoseu-lhe a vida por ali abaixo num instante mais rápido que um penso, e ao tombar em cima do doze, «Ó milagre dos milagres!», devolveu à vida o marxista-leninista. Com o resto dos membros da equipa – os que ainda se encontravam vivos – a socorrer e a felicitar o camarada, junto ao chão, quase encostada ao estetoscópio, ainda se ouvia rugir incontida a enfermeira-chefe do casaquinho azul de malha: «Pasca aí, ó javardo! É assim que se salvam as pessoas, burgesso!»

Enquanto a mosca, a verdejante varejeira, adejava sorrateiramente pela janela mais próxima em direção a uma outra qualquer instituição de saúde – pública ou privada.


Pedro deCampos (8.12.2014) in "LiteraDura do ProleTariado"


quinta-feira, 15 de junho de 2017

LiteraDura de PAREDE < 3




AVENTURAS DE BASÍLIO FERNANDES ENXERTADO, por Camilo Castelo Branco


Pelo Humor de Deus!


"Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um i; mas se lhe tirassem a pinta ao i, chamava-lhe o. O mestre seguia o sistema de pancadaria, sistema o mais racional de todos com cabeças daquele feitio."
I.
Nasce o Herói. A Cabeça e as Espertezas do Mesmo

Basílio Fernandes é um sujeito de trinta e sete anos, com senso comum, engraçado a contar histórias da sua vida, activo negociante de vinhos no Porto, amigo do seu amigo, e bastante dinheiroso - o que é melhor que tudo já dito e por dizer.

Seu pai chamou-se José Fernandes, por alcunha o Enxertado. Pegou-lhe a alcunha, porque, sendo ele natural de uma aldeia de Trás-os-Montes, quando já era caixeiro, muitas vezes dizia aos seus companheiros de passeata, aos domingos: «O Porto é boa terra; mas lá como o Enxertado, ainda não pus os olhos noutra!». A caixeirada, menos sensível à saudade das suas aldeias, ria do moço, e, por mofa, lhe chamava o Enxertado, alcunha que ele ajuntou aos seu nome com honras de apelido. (...)

Basílio foi o primogénito e único. Nascera muito gordo e extraordinàriamente volumoso. Tinha a cabeça igual ao restante do corpo, e uns pés dignos pedestais do capitel da irregular coluna. Em quanto ao tamanho descomunal da cabeça, foi isto motivo para muitas alegrias em casa; no parecer daquela mãe ditosa, a grandeza da cabeça era sinal de juízo, e o tamanho das orelhas correlativas sinal de bom coração. O pai, como não tinha ideias suas acerca de orelhas, abundava nas de sua mulher, posto que de via certa soubesse por um mau vizinho da porta dissera que o seu Basílio era aleijado, e sairia com orelhas de burro, se se demorasse mais três meses no ventre materno.

A casa do merceeiro ia um frade carmelitano de óptimos costumes, ainda parente transversal da senhora Bonifácia. Era opinião de frei Silvestre do Monte do Carmo, que a volumosa cabeça do menino significava talento. Este prognóstico abalava medìocremente os ânimos dos pais, que não sabiam o que era, nem o para que servia neste mundo o talento. (...)

José Fernandes, como o filho tivesse oito anos bem espigados, comprou-lhe um A B C, e foi levá-lo à escola. Era a cabeça de Basílio, no dizer do mestre, muito mais dura, e tapada, e maior que a bola de pedra da torre dos Clérigos. Ao cabo de três meses, Basílio já conhecia um o e um ; mas se tirassem a pinta ao i , chamava-lhe o. O mestre seguia o sistema de pancadaria, o mais racional de todos com cabeças daquele feitio. Basílio entrava em casa a chorar, a mãe saía de mantilha a descompor o mestre, o mestre, exauridas as razões, descompunha a senhora Bonifácia, e assim andaram, ora melhor ora pior, até que Basílio aprendeu o abecedário, às direitas, às avessas e salteado. (...)

Naquela idade, entre os dez e onze anos, parou de crescer a cabeça de Basílio. Fenómeno, certamente! (...) Quem deu primeiro por isto foi a discreta senhora Bonifácia, observando que o chapéu braguês dos nove anos lhe ajustava perfeitamente aos onze. Esta razão não é tão judiciosa como parece ao primeiro lanço; o ponto de apoio do chapéu de Basílio eram as orelhas; todos os chapéus lhe assentavam bem, contanto que as orelhas não ficassem inclusas, o que seria impraticável, sem dar ao chapéu a forma de uma canoa transversa.

Que a cabeça não cresceu desde os dez até aos dezanove, isso vê-se e mostra-se, apesar da ciência, na série de chapéus correspondentes aos decorridos nove anos, chapéus, que Basílio conserva, datados no forro, por mão de seu tio frei Silvestre, que, nos últimos anos de sua vida, não estudou senão a cabeça do sobrinho, e a estrada da salvação de três confessadas suas, cujo herdeiro ele foi.

Este fenomenal pousio da cabeça exterior parece que, no interno, foi causa de fertilização igualmente pasmosa! Basílio aprendeu a ler, desmentindo o mestre, que apostava pela irremediável negação do idiota. Em escrita, particularmente no bastardinho, deu invejas aos mais louvados condiscípulos. Em contas, desde as quatro operações até quebrados, foi um pasmar de rapidez e inteligência! Era um reviramento completo!

Agora, diremos de fugida algumas outras espertezas de Basílio Fernandes Enxertado nesta sua puerícia e começos de adolescência. (...)

in, Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (1863) Parceria A. M. Pereira, LDA, 6.ª ed., 1966, Lisboa, Colecção Obras de Camilo Castelo Branco (vol. LXVII) pp. 5-9 


terça-feira, 13 de junho de 2017

SIGNOS ORTOLUMINOSOS

parte primeira
o verde na primeira pessoa do plural

sei bem
quando te preparas
para estacionar uma conversa

começas por
abrandar nas palavras
exaltadas
manobras encostos
na riqueza dos vocábulos
estacionas teus gerúndios compostos
de experiência e desejo
e desligas-te com a tonicidade
de uma conclusão grave

nalgumas vezes
logo após manobras um tanto ou quanto
agudas

noutras delas
só depois de teres estipulado a velocidade ilimitada
entre a travagem dos sinónimos
e a derrapagem num contínuo
palavrão


parte segunda
um advérbio de modos amarelos

o trânsito na tua mesa
faz-se sempre por dentre
palavras-compotas
e geleias esdruxulamente açucaradas
enquanto o teu ângulo de visão
vai acelerando muito
para lá de todos os frascos
e utensílios da viagem dos gostos

é o infinito vazio que focas
num raciocínio congestionado de ideias francas
que eu procuro iluminar

depois
quando me embates numa diminutiva travagem de olhos
e de novo me fazes mecanizado peão na passadeira da tua língua
sei muito bem
que já te vais preparando
para estacionar esta conversa

e eu fico-me num advérbio
de modo circulando em ésses cedilhados
por dentre sinais miluminosos e signos octogonazais
e pelos significados proibidos e significantes assinalados
que me ardem examinar.


parte última
vermelhas exclamações

se me conduzires para lá da fumaça
mal carburada deste cigarro
( via rápida para o prontuário das manobras perigosas )
eu pontuarei sempre tuas curvas
com diários pontos de exclamação

stop



















Pedro deCampos (18.7.2003) in "PisaDuras & ArDores"


NO TEMPO DAS CAPAS GORDAS > 2


sexta-feira, 9 de junho de 2017

CONSERVAS DE SERAFIM

Serafim (s.m.) anjo da primeira hierarquia; (fig) criança ou pessoa de rara formosura.
O meu avô Serafim não era nenhum anjo. Trabalhava numa fábrica de reaproveitamento de detritos de peixe e vinha almoçar a casa tresandando ao que de mais podre o mar pode ter. Eu achava-lhe graça ao nome. Gostava de o chamar «Ó Serafim!», mas não podia, por causa do respeitinho. Ao respeitinho nunca achei muita graça. Quem achava graça ao respeitinho era o meu avô Serafim.

O meu avô Serafim andava com grandes pacotes embrulhados em papel pardo, atados com cordel fininho e com uma argolinha no fim do nó para se transportar enfiando um ou dois dedos. Quando transportava estes pacotes, pesados, o meu dedo ficava marcado como as goelas de um enforcado. Ficava horas e horas naquele roxo aspeto. Doía. Parecia que o dedo se ia em dois a qualquer momento. Mesmo assim não conseguia evitar fazê-lo. Às vezes ainda olho para laços deste género da mesma forma: com um misto apertado de pavor e vontade. Especialmente por não ser o dedo que me apetece pôr no laço, que foi o que acabou por fazer o meu avô Serafim. 

O meu avô Serafim trazia dentro desses pacotes muitas latas com peixe ou outros animais do mar conservados em óleo. Às vezes em azeite, mas eram mais raros na família. Chamávamos-lhe latas de conserva pois não havia mais nada conservado em latas lá por casa do meu avô Serafim.

O meu avô Serafim gostava das de sardinha. Eu preferia as de filetes de cavala. Aqueles embrulhos traziam dentro traineiras de felicidade. Ainda hoje, assim que saco da tampa à lata e vejo o filete a reluzir em óleo, que as de azeite continuam a ser mais raras na família, sobe-me ao nariz uma imensa alegria (como a da mostarda mas sem o pingo) e vem-me à boca o cheiro do meu avô Serafim.

O meu avô Serafim dizia sempre a mesma piada quando comia uma lata de sardinhas em tomatada: «Esta lata só traz sardinhas macho porque têm tomates.» As minhas primeiras espreitadelas aos tomates (literárias e literais) devo-as ao meu avô Serafim. 

O meu avô Serafim, pensava eu naqueles tempos, gostava de latas de conservas de peixe porque queria ser um. Queira cheirar a mar vivinho ou, pelo menos, cheirar a peixes em conserva. Se estivesse fechado numa lata, durante a hora do almoço, já não cheiraria ao que de mais podre o mar pode ter, o meu avô Serafim. 

O meu avô Serafim olhava-me de soslaio com aqueles seus ares do respeitinho é muito bonito sempre que eu gargalhava ao imaginar-me a abrir uma lata de conservas de serafins e encontrar vários serafins em forma de filete lá dentro. Ainda hoje, quando abro uma lata, sobe-me à boca uma gargalhada porque encontro sempre o meu avô Serafim. Em filete, com asas e auréola de anjo, mas sempre com as grandes orelhas do meu avô Serafim. 

O meu avô Serafim gostava muito do respeitinho. Mas com umas orelhas daquelas desconfio que ele não era nenhum Serafim.


Nazaré (2006)













Pedro deCampos (18.11.2016) in "ApontaMentes"