domingo, 31 de dezembro de 2017

PIERRE DES CHAMPS (Correspondendo de Montparnasse em Paris de França)

in, Do Escarro, Do Mal & Um Ou Outro Dizer 

(das cantigas do hoje em dia)


"(...) razão para que o primeiro escarro literário deste vosso humilde e servil amante das palavras seja projetado aqui mesmo na Cidade das Luzes, no pleno dos mais apaixonantes bairros da remota Paris e mesmo em cheio no meio dos olhos do fenómeno bestial que é esse cego mundo da moda."

Vivia eu a Paris destes duros dias - embora preguiçasse imenso numa cama barata de uma mais barata ainda pensão no bairro de Montparnasse, prostado frente ao mágico caixote que dá pelo nome de televisor e quedando-me na vã esperança de enriquecer internamente o espírito com um fantástico tele-documentário sobre corpos mumificados espontaneamente pelo decorrer dos tempos - quando um estranhíssimo calafrio me percorreu toda a longitude da espinha dorsal: estaria eu, porventura, a excitar-me - e diga-se-lo sem tabús - mui libidinosamente por aquele raquítico corpo, encarquilhado sobre si mesmo, fidelíssimo retrato da dor de uma morte hipotérmica?

Sim! Era a mais dolorosa das verdades. A dita múmia, anorexizada pelos fenómenos naturais, atraía-me como a mais bela das carnudas morenas portuguesas e tanto como qualquer uma das índias do Gaugin. E é esta a plausibilíssima razão para que o primeiro escarro literário deste vosso humilde e servil amante das palavras seja projectado aqui mesmo na Cidade das Luzes, no pleno dos mais apaixonantes bairros da remota Paris e mesmo em cheio no meio dos olhos do fenómeno bestial que é esse cego mundo da moda.

Passo de seguida, apressado, a explicar os porquês: porque esta faceta do mal a que não resisto nem consigo combater, dita-me as cores que devo usar nas estações que mais me apaixonam; porque atrofia a livre estética do corte pessoal; porque desenvolve vilmente aquelas frases feitas, palavras malditas, dizeres do corte golpeado bem fundo em algumas pessoas, noutros pessoais e naqueloutros pessoanos também; porque se ouvem, infinitas vezes mil, aqueles "Veste-se tão mal, coitadinho...", muito pouco sábios dizeres; e ainda, essencialmente, porque todas as ainda púberes donzelas, adolescentes mal consciencializadas, jovens já safadas e também as damas muito sabidas, são assim impelidas à vontade de quererem pesar trinta quilos e tornarem-se empresárias de um par de pernas um tanto ou quanto parecido ao da múmia por quem me apaixonei há pouco. 

É que, quer queiramos quer não, a publicidade óssea chega a todos e a todas as partes.

Pedro deCampos (16.09.2000) ∈ PÉGASO - Jornal de Parede


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